Neste 5 de setembro, Dia Internacional da Mulher Indígena, a voz que ecoa é de luta, poesia e resistência. No sopro da oralidade, o cordel encontra a memória ancestral. Entre folhas soltas, cantos de avó e toadas de vaqueiro, Auritha Tabajara, primeira cordelista indígena do Brasil, transforma vida em poesia e revela como a literatura é “resistência, afeto e mundo”.
O Bem Viver, programa do Brasil de Fato, traz a artista tabajara cearense que constrói uma trajetória singular marcada por importantes conquistas. Com dez títulos publicados, incluindo obras fundamentais como Coração na Aldeia e Pés no Mundo (2018), A Árvore do Caju e Magistério Indígena e Versos de Poesia – seu primeiro livro, que completa 20 anos –, Auritha Tabajara consolida-se como voz essencial da literatura brasileira contemporânea.
A obra Apytama – Floresta de Histórias (Companhia das Letras), da qual é coautora, conquistou o Prêmio Jabuti 2023, colocando a literatura de cordel de raiz indígena no lugar de maior prestígio das letras nacionais. Membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira, a autora expande fronteiras com traduções para o inglês e participações em feiras internacionais, como a Feira Internacional do Livro de Bogotá (FILBo).
Herdeira da sabedoria de dona Francisca Gomes, sua avó de 96 anos – “parteira, benzedeira, mezinheira e uma das maiores contadoras de histórias da nossa região” –, Auritha Tabajara aprendeu que “não se deve cortar as pontas das asas secretas com as quais se nasceu”. O trabalho dela entrelaça a força da oralidade ancestral com o poder da palavra escrita, afirmando, no papel, o que sempre esteve gravado na memória de seu povo.
Nesta entrevista, a artista fala sobre machismo, resistência e o lugar da mulher indígena na literatura: “Não nasci para ser submissa, nasci para ser livre. E quero que outras mulheres sejam livres”. Uma trajetória que honra o passado, ilumina o presente e abre caminhos para futuras gerações.
Brasil de Fato – Quem é a Auritha?
Auritha Tabajara – Eu sou a Auritha Tabajara, nascida longe da praia, fascinada pela rima e pela melodia da jandaia. No Ceará foi a festa, e meu leito foi a floresta, nas folhas de samambaia. A minha essência ancestral me encontra cordelizando em Amparo, faz-me existir e, ao mundo, eu vou contando que a minha forma de amar ninguém vai colonizar. De arte, vou me armando. Filha da Mãe Natureza, mulher guerreira eu sou.
Com a força feminina, cinco séculos atravessou, cada vez mais sábia e forte. O meu medo é a morte que o preconceito gerou. Hoje esta mulher levanta com letra e voz autoral, contra toda violência, por um amor ancestral, de um corpo ensanguentado, usado, sem ser amado, mas com espírito imortal. Minha avó é referência.
Desde o tempo de menina até me tornar mulher, as histórias que ela ensina me incentivam a falar que a mulher tem seu lugar, raiz que nunca termina. Eu não sou como Iracema, a de José de Alencar. Sou do povo Tabajara, onde canta o sabiá. Me alude Odeia tem Burana e minha terra é soberana pelo toque do Maracá. Esta sou eu. Linda. É, espera aí que eu estou emocionada.
Você é a primeira indígena a publicar cordel no Brasil. Queria que você falasse um pouco sobre essa união de tradições. E como foi esse processo de trazer a narrativa indígena para essa cultura nordestina?
Eu sou uma mulher indígena, nordestina, cearense. A terra do Patativa do Assaré, da doutora Paula Torres, do Arivaldo Viana, do Júlio Oliveira e a terra de Dona Francisca Gomes, minha avó, hoje com 96 anos, parteira, benzedeira, mezinheira e uma das maiores contadoras de histórias da nossa região.
Toda uma ancestralidade existiu e resistiu naquela região, inclusive a região que José de Alencar descreve no romance Iracema.
Lá no romance, ele diz que Iracema é do povo Tabajara, é do meu povo. A descrição que ele faz da região, do nome das coisas, do pajé, é exclusivamente do meu povo. Unir o cordel com essa oralidade da tradição indígena é simples, é como unir duas palhas para trançar o mesmo cesto.
Eu vejo nesse sentido, por nascer e crescer ouvindo a oralidade das tradições do meu povo, e também tem as declamações dos romances, porque minha avó é declamadora, meu avô era vaqueiro. Ele cantava com o gado o cordel cantado, a toada, que ele não aprendeu em lugar nenhum. Eram toadas, eu chamo de toadas personalizadas e ancestrais, porque era criada ali na hora.
Era daquela forma que eu queria falar com o povo, queria falar com as pessoas, do jeito como as histórias contadas pela minha avó e do jeito que o meu avô cantava com o gado. Para trazer, então, a oralidade e o cordel se encontrando desde lá da barriga da minha mãe, porque eu aprendi a ler e escrever em casa. Eu não fui para a escola para aprender a ler e escrever; já aprendi a ler dentro da rima.
Eu escrevo em todas as modalidades do cordel sem estudar, sem fazer curso para escrever as técnicas do cordel. Então, foi através da oralidade. É tanto que, quando eu fui para a escola, eu tive dificuldade nisso, de ser alfabetizada. Quando eu fui fazer curso de cordel, eu tive dificuldade de entender, porque eu já escrevia dentro de todas as técnicas. E isso é oralidade.
Como foi esse despertar de trazer toda essa oralidade para a literatura?
A literatura dita “literatura indígena”, escrita por pessoas indígenas, começa muito antes do papel. Ela começa aqui no meu rosto com grafismo. Ela começa lá num tempo que a gente não sabe datar, quando os nossos ancestrais já pintavam o corpo com urucum e jenipapo para contar a sua história. Para dizer que essa região, esse lugar, tem uma história de ancestrais que existiram muito antes de 1500.
Essa história vem sendo contada muito antes de a gente escrever os nossos livros. Hoje, eu acredito que seja esse encontro. Dessa literatura que foi escrita através dos traços do grafismo, dos traços das mãos, onde os nossos ancestrais iam passando, colocando nas pedras, nas árvores. A mão não corta a árvore para poder escrever, mas a mão suja de urucum com jenipapo e o óleo de coco que fixa.
Agora, a gente precisa estar também caminhando junto, dialogando com a modernidade. A gente põe no papel, porque também fica mais fácil de viajar. Eu não posso estar em vários lugares do Brasil ao mesmo tempo, mas a literatura pode, os meus livros podem. A minha avó não pode estar lá na Colômbia, como eu já fui, para dizer que é internacional. Mas o que ela me conta e eu coloco no papel, pode.
Acho super importante essa caminhada que a literatura faz, junto com a oralidade, porque não são só palavras no papel lidas, mas ela vem com uma história de sentimentos para poder estar escrita ali em palavras.
Auritha, você falou um pouco dessa coisa da expansão da literatura e da força de estar em uns lugares, e o seu livro se tornou filme. Como é que foi esse processo? Como foi ver essa história também das palavras escritas, do livro, materializado no filme e no vídeo?
O livro é esse aqui, ó: Coração na Aldeia e Pés no Mundo.
Eu comecei a escrever esse livro quando eu tinha 9 anos de idade. Eu sempre fui muito curiosa e eu queria muito escrever. Eu não tinha consciência de que seria um livro na minha infância, mas eu queria que as pessoas conhecessem a história de quando eu chorei na barriga da minha mãe antes de nascer, por exemplo. Eu aprendi a ler conhecendo as ervas medicinais, a minha vó explicava a planta e eu escrevia um cordel para aquela planta. Foi o meu jeito de aprender a ler e a escrever.
Com minhas folhinhas amareladas, porque na época eu não tinha caderno, a gente não tinha como, nem condições de comprar um caderno. Eu sempre fui amiga de professores desde a infância, mesmo sem ir para a escola, os professores gostavam de mim. Às vezes, quando iam professores visitar a aldeia, que a gente tem os rituais de mocororó, eu pedia folhas, e eles me davam as folhinhas soltas, que a gente chama de folha de almaço, eu acho que esse é o nome. Folha de almaço, que é uma folha grande que não tem arame. E ali eu colocava uma fita aqui e fazia o meu caderno.
E foi nesse caderno de folha de almaço que, com 9 anos, eu escrevi a minha história e li para minha avó. E minha avó apenas falou assim para mim: “Não esqueça quem você é, o significado do seu nome. Não deixe ninguém cortar nunca as pontas das asas secretas com as quais você nasceu”. Naquele momento, eu não entendi, porque eu queria que a minha avó dissesse assim: “Ai, como está lindo! Ai, minha neta, que coisa linda!”. Não foi isso que ela me disse. Hoje eu entendo. Então, eu escrevi, dizendo que estava escrevendo a minha história.
Guardei e, quando eu vim para São Paulo, em 2009, chutei o pau da barraca e não queria ficar casada. É uma longa história, precisa assistir o filme para entender. Vim para São Paulo e terminei de escrever Coração na Aldeia e Pés no Mundo quando eu estava em situação de rua, por 3 anos: 2009, 10 e 11. E foi nesse aprendizado de não ter um quarto para dormir, nem uma cama, que eu ia escrever. E foi nesse processo que eu terminei o Coração na Aldeia e Pés no Mundo, que foi lançado em 2018 pela UCA Editora, com ilustrações da Regina Drozina.
Eu trago para dentro as duas cores que a gente usa, que é o vermelho e o preto, que é o jenipapo e o urucum, que são os dois equilíbrios de força. E quando a Débora, que é a produtora do filme, me conheceu através das redes sociais, perguntou se eu topava fazer um filme da história. E eu: “Tudo bem, a gente pode escrever juntas”.
Eu participei de todo o processo, desde o primeiro pensamento de como seriam as cenas e tal. Ela leu, acho que dez vezes esse livro. Ela disse que toda vida que lê, chora. A gente foi tentar transformar essas palavras de vivências que eu trago para dentro do Coração na Aldeia para a tela.
Porque eu acho que quando você vê, visualiza, talvez seja mais fácil entender o sentimento do outro. Porque esse livro tem muitas histórias. As pessoas que leem se identificam. Outras mulheres indígenas que leram e começaram também a escrever a sua própria história ou a história do seu povo. É um incentivo. Eu vejo esse livro como um ancestral, ele não é só um papel, uma coisa escrita, ele também tem um espírito ancestral muito forte.
E na tela, quando eu entendi que o filme estava pronto, eu entendi também que pode ser o meu espírito, o espírito de outras mulheres que vieram muito antes de mim, dançando ali para vocês poderem assistir de um jeito que possam visualizar. Isso que eu quero que as pessoas entendam: que muitas pessoas não tiveram a oportunidade de falar e hoje, com a tecnologia, a gente tem.
No filme, a gente também retrata a denúncia da questão do machismo, que muitas pessoas acham que dentro dos movimentos indígenas não existe. Existe sim, infelizmente a gente foi contaminado por tudo que a sociedade não indígena é contaminada. É para gente caminhar lado a lado, e não ser submisso a ninguém.
Eu nasci para ser livre. E eu quero que as minhas filhas sejam livres, eu quero que outras mulheres sejam livres, eu quero que a juventude seja livre, capaz de pensar com qualidade, com sabedoria e sem esquecer essa sabedoria ancestral que a gente vem contando, essa história muito antes de a gente nascer. É isso que traz o Coração na Aldeia e Pés no Mundo e o filme A Mulher Sem Chão.
Você agora faz parte da Academia Internacional de Literatura Brasileira, e você falou que foi para a Colômbia. Como foi essa recepção do seu trabalho das pessoas fora do Brasil? E também como é estar nesses espaços que são mais de brancos, eurocêntricos, e trazer essa outra narrativa, essa outra representatividade?
Eu não viajei muito para outros países. Só para Colômbia, para Portugal e vou agora para Massachusetts, porque o livro vai ser lançado lá e foi traduzido para o inglês.
Quando eu fui para Colômbia, fora do país, eu tive a impressão de que as pessoas têm um olhar de respeito muito profundo pela literatura indígena, por esse saber ancestral que a gente leva através da nossa escrita.
Aqui no Brasil, eu não sei se é porque é por aqui eu viajo mais, eu percebo que a gente precisa o tempo todo estar afirmando que a nossa literatura, que a literatura escrita por pessoas indígenas tem qualidade igual às outras.
Na Colômbia, na Filbo, eu fiz vários bate-papos com adolescentes. Gente, o nível de perguntas, do diálogo dos adolescentes com a literatura indígena, eu me surpreendi muito, porque eu não imaginava que, lá em Bogotá, eu encontraria uma plateia de adolescentes que conhecem a literatura indígena, inclusive os meus livros. Isso me surpreendeu muito, e um diálogo com muito respeito.
Ninguém na Colômbia me perguntou se eu sou indígena de verdade, se o que eu escrevo é verdade, se o meu povo é de verdade. E aqui no Brasil eu escuto isso: “Mas tu é índia de verdade? Tu fala português? Tu usa celular?”. Aí eu digo assim: “Dizem que o índio que é índio mesmo, que é da moradia, vive nu, comendo caça, numa rede noite e dia, e não pode usar internet porque é tecnologia. Pois eu sou é nordestina, tenho orgulho de dizer. Sou Tabajara, uso vestido, como o que der para comer e uso o celular com a internet porque eu trabalhei para ter”. Às vezes é meio cansativo. E lá eu não senti isso. Eu não sei se é porque foi só lá. Em Portugal também eu não senti, apesar de ter parentes que já foram e que também se surpreenderam. Nos três países que eu fui, eu não ouvi essa pergunta se eu sou índia de verdade, se no Brasil existe índio. Não ouvi. Espero não ter essa experiência em outros países quando eu viajar.
Sobre os adolescentes, a gente tem a lei que obriga tanto o ensino afro-brasileiro quanto o ensino indígena nas escolas, de um modo geral, do ensino básico até o superior. Mas essa prática é um pouco diferente do papel. O que você acha que é? Como essa prática efetiva poderia potencializar esses estudantes, potencializar não só os povos indígenas, mas a toda a sociedade, nosso futuro que está sendo formado nas escolas?
A lei 11.645/2008 tem 16 anos. Está lá escrito a obrigatoriedade de trabalhar a cultura indígena e afro-brasileira dentro da sala de aula.
Na minha concepção, o que falta é um cuidado também dos governantes para com isso, as políticas públicas, as formações dos professores. Porque muitos educadores também não têm esse tempo de conhecer as culturas indígenas, que é uma grande diversidade. São mais de 300 povos indígenas no país, tem uma riqueza e uma diversidade muito grande de culturas e tradições.
Eu sou do Norte do Ceará, minha cultura, a cultura do meu povo não é igual à cultura do povo lá do Xingu. Muitas pessoas, por conta dessa construção da história que a gente traz, vê os livros e acham que os povos indígenas são todos iguais, todo mundo fala a língua tupi. Tupi é um tronco linguístico, de 274 troncos linguísticos.
Falta muito ainda para que a sociedade, dentro das escolas, conheça realmente como são os povos indígenas na atualidade, para poder levar isso para os alunos.
Eu moro em São Paulo e, em São Paulo, tem muitas pessoas indígenas fazendo o mesmo trabalho que eu faço nas escolas, de levar a cultura como ela realmente é, mas a do meu povo. Eu não posso levar para uma escola a cultura de 305 povos, porque nem eu conheço. Quem me dera conhecer as culturas, essa grande riqueza e diversidade que há entre os povos indígenas.
Eu tenho conversado com educadores e para eles também é difícil. É entender como levar essa cultura ou essa história para dentro da sala de aula. Eu falo para eles: “Nós somos mais de 200 escritores indígenas no país. Podem conhecer através dos livros”. Mas, às vezes, só o livro não é o suficiente. Precisa vir alguém da cultura, porque nem sempre no livro vai estar escrito a essência que é a cultura. Tem coisas que a gente também não vai poder colocar no papel, por várias questões.
Eu, como uma mulher indígena Tabajara, lá na sala, na escola, ensino a dançar o toré, eu digo por que que a gente usa o cocar, por que que a gente usa maracá, qual é o tronco linguístico da nossa língua, que é o Nheengatu, mas eles ficam conhecendo sobre a cultura do meu povo.
E, muitas vezes, por falta, talvez, desse conhecimento mais coletivo, a escola, por mais que eu diga que é um povo, que mesmo que seja o mesmo povo em estados diferentes, a cultura muda, a cultura é diferente. Muitas vezes as pessoas me marcam lá no Instagram dizendo: “Olha só a cultura dos povos indígenas”. Gente, não, é cultura do povo Tabajara. Entende?
Eu entendo que é difícil ainda, mesmo a gente entendendo que a lei existe. É um trabalho de formiguinha. Falta esse trabalho bem coletivo das políticas públicas e das formações, para poder abranger melhor como se trabalhar a questão indígena na sala de aula. Esse é o meu ponto de vista.
Você falou como a natureza está ligada à essa cultura, à identidade, à oralidade e à essa literatura. Existe também essa união, a natureza e a literatura indígena caminham muito juntas no sentido de a gente lutar também por essa preservação ambiental, pela preservação da natureza, em um mundo que a gente está vendo tudo literalmente derreter. A literatura indígena, junto com o meio ambiente, vai caminhando no sentido contrário. Como que é essa relação?
Quando eu tinha 9 anos, o meu primeiro texto, que é O Grão, que eu escrevi em um castigo da escola, porque a gente não conhece essa palavra “castigo” até hoje. Na aldeia, a gente não coloca as nossas crianças de castigo, a gente dialoga, conversa, conta histórias. A gente faz o círculo, explica para criança que o circular é um jeito de aprender sem começo, meio e nem fim; é aprender, é dar continuidade, é levar isso para onde a gente for.
Desde muito pequena, eu gostei muito de observar, estar com a mão na semente para plantar com os meus avós. Por que eu falo muito dos meus avós? Porque eu fui criada por eles, não fui criada com os meus pais. Desde a hora do meu nascimento, eu estive com os meus avós.
Então é colocar a mão na semente, na terra, entender qual é a terra melhor para plantar aquela semente, que tipo de semente vai no alto, vai no baixo, na terra baixa, na terra alta, na terra mais molhada e na terra mais seca. E eu ficava muito encantada com esse jeito, com esse jeito de a gente estar com a mão na terra.
Quando eu fui para a escola, lá no cimento, eu não podia pôr a mão no chão, que o pessoal brigava, que tinha que pôr a mão no chão, depois ia pôr na boca, ia adoecer e ia morrer. O pessoal falava isso. E aí eu ficava: “Mas se na aldeia a gente vive o tempo todo com a mão na terra, porque aqui dentro da sala de aula a gente não pode pôr a mão na terra?”.
Então, eu escrevi um texto que em eu digo assim:
“Vou contar-lhe um segredo que aprendi como um enredo
Recitando em poesia, de um grão que foi plantado,
Cultivado e germinado para se praticar todo dia.
Esse grão vem da memória, transformado em história
Para nossa educação.
Um velho quem me contou sobre o grão que já rotou
No despertar da tradição.
Eu fiquei imaginando na cabeça martelando
O que esse grão significa, será bom para comer?
Para ninguém queria dizer.
Vai que esse grão não fica?
Fui perguntar lá no rio, mas ele estava com frio
E não quis me responder.
Voltei até o curral, mas não tinha um animal
Para algo me dizer.
Fui perguntar para Jandaia que se banhava na praia
Para o lado de Fortaleza,
Ela me mandou voltar e os ancestrais escutar
E ouvir a Mãe Natureza.
Aí me veio a lembrança, é, meu tempo de infância,
Que os velhos me diziam que prestasse atenção
Na chamada educação, não deixar a cuca vazia.
Na aldeia a gente dança e aprende desde criança
O maracá balançar.
Entende o que é respeito porque sabe o efeito
Na hora de educar.”
Esse texto é bem longo, mas ele tá publicado nas redes sociais, está livre na internet para quem quiser conhecer. Porque eu ficava nessa: “E agora? As pessoas que sabem ler e escrever não podem pôr a mão no chão?”. Na minha cabeça, ficava sem entender.
Hoje eu entendo que são duas coisas que precisam caminhar juntas: entender como outras coisas da natureza funcionam, e eu preciso saber ler e preciso saber escrever para que outras pessoas também entendam isso futuramente, inclusive a juventude.
Nessas viagens, eu tenho percebido que a juventude ela está vindo com uma sabedoria muito grande. Na minha infância, eu ouvia: “Você precisa enxergar não somente com esses dois olhinhos pequenos que você tem, você precisa enxergar com o olho, o olhar espiritual, esse olhar que vai muito mais além do que o corpo físico”.
E hoje eu vejo isso na juventude. Não sei o que a gente pode fazer para que desperte de uma forma que respeite a natureza, que você entenda que existem as leis dizendo que jogar lixo no chão não pode, porque vai sujar o meio ambiente. Nós, indígenas, a gente sabe disso muito antes de alguém escrever no papel. A gente entende que jogar lixo no chão vai poluir a nossa Mãe Natureza. Os rios vão morrer, os peixes vão morrer, o rio vai ficar poluído, a gente vai beber água suja e vai morrer. A árvore, o lixo vai para a raiz dela, ela não vai poder expandir, vai apodrecer o tronco e a gente vai ficar sem respirar. A gente entende isso muito cedo, desde muito cedo. Eu não precisei ler para poder entender isso.
E hoje, assim, parece que as pessoas precisam ler para poder entender que isso é real, que isso precisa ser colocado em prática. É uma coisa que eu sinto, mas que talvez eu não saiba explicar. É que eu acredito muito, muito na juventude. Eu acredito muito nas novas gerações. E são elas que vão dar continuidade à nossa história de um jeito muito bonito.
Como foi ganhar o Prêmio Jabuti com o livro Apytama – Floresta De Histórias?
Ele não é um livro só meu, é um livro de oito escritores indígenas, organizado pelo Kaká Werá, pela Companhia das Letras. E no Apytama tem o cordel, então de uma certa forma a literatura de cordel está lá no Prêmio Jabuti.
Quando eu entendi que o Apytama tinha ganhado o Prêmio Jabuti… Porque, gente, o meu texto que está no Jabuti é de literatura de cordel. E o título é Respeite a Mãe Natureza.
Para mim foi muito mais que um prêmio. Apytama significa “floresta de histórias”. Será que a palavra é reflorestar o entendimento, a mente das pessoas que o livro vai alcançar? Porque quando se torna prêmio, ele alcança muito mais pessoas do que quando ele é somente um livro, uma antologia.
Eu fico muito feliz de saber que as nossas vozes estão ecoando em vários lugares dessa floresta, planeta, que minha avó disse que tem buracos escuros muitas vezes, e que essa literatura, essa floresta de histórias, essas vozes, podem iluminar esse buraco escuro, sabe?
O Apytama é um livro lindo, é um livro incrível, lindo demais e com muitas histórias bonitas. São oito histórias contada por oito etnias diferentes, oito regiões do país, e que ganhou o mundo. Perfeito.
Quem quiser conhecer o seu trabalho…
Quem quiser conhecer o nosso trabalho, não só o meu, mas a gente tem a página no Instagram “Leia Mulheres Indígenas“. Lá tem o perfil de muitas mulheres indígenas, a pesquisa que a Trudruá Dorrico vai fazendo, porque ela é doutora em literatura indígena.
E o meu é o Instagram @ita.tabajara. Lá tem como adquirir os meus livros, que eu estou no 10º título este ano. Fiz 20 anos de literatura no ano passado, meu primeiro livro fez 20 anos: Magistério Indígena e Versos de Poesia. Sou a primeira mulher indígena a publicar um livro didático no Ceará. Sou primeira em um bocado de coisas também.
Eu sou sapatão, indígena, do movimento indígena. Sou a primeira mulher no Nordeste indígena a quebrar uma tradição. Não sei se é bonito dizer isso, mas eu não me arrependo do casamento, porque eu não queria ficar casada. Eu quebrei o espelho para dizer: “Eu estou me casando, mas não é isso que eu quero”. Essa cena passa no filme. São muitas histórias. Leia Coração na Aldeia e Pés no Mundo para poder entender mais essa história.
E tem mais no Bem Viver…
O programa vai também até Pernambuco conhecer o legado do mestre J. Borges, patrimônio vivo que levou a cultura nordestina para o mundo através do cordel e da xilogravura.
E no quadro Comida de Verdade, a chef Gema Sotto prepara uma tapioca gelada surpreendente, com aquele toque especial que só ela tem!
O coletivo de mulheres do Paraná que encontrou na arte das arpilleiras uma forma de independência financeira e expressão.
E a história inspiradora de uma vila na China que se revitalizou através do cultivo da lavanda.
Quando e onde assistir?
No YouTube do Brasil de Fato todo sábado às 13h30, tem programa inédito. Basta clicar aqui.
Na TVT: sábado às 13h; com reprise domingo às 6h30 e terça-feira às 20h no canal 44.1 – sinal digital HD aberto na Grande São Paulo e canal 512 NET HD-ABC.
Na TV Brasil (EBC), sexta-feira às 6h30.
Na TVE Bahia: sábado às 12h30, com reprise quinta-feira às 7h30, no canal 30 (7.1 no aparelho) do sinal digital.
Na TVCom Maceió: sábado às 10h30, com reprise domingo às 10h, no canal 12 da NET.
Na TV Floripa: sábado às 13h30, reprises ao longo da programação, no canal 12 da NET.
Na TVU Recife: sábados às 12h30, com reprise terça-feira às 21h, no canal 40 UHF digital.
Na UnBTV: sextas-feiras às 10h30 e 16h30, em Brasília no Canal 15 da NET.
TV UFMA Maranhão: quinta-feira às 10h40, no canal aberto 16.1, Sky 316, TVN 16 e Claro 17.
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