A CSN MINERAÇÃO, segunda maior exportadora de ferro do Brasil, tenta na Justiça esvaziar a legitimidade da comunidade de Santa Quitéria, que se autodeclara quilombola, enquanto avança com um projeto de pilhas de rejeito de minério no entorno das residências, em Congonhas (MG). Os moradores lutam pela suspensão do empreendimento.
A companhia contratou o escritório Décio Freire, um dos mais influentes da advocacia empresarial brasileira. Além da banca de advogados, o principal porta-voz da mineradora é o diretor de Investimentos, Otto Levy.
Ex-secretário de Planejamento do governo de Romeu Zema (Novo), ele tem representado publicamente a companhia em audiências e negociações, desde que deixou o governo mineiro. A atuação de Levy é alvo de críticas por um possível conflito de interesses.
Decreto de Zema desapropriou parte da área em julho do ano passado
O embate gira em torno da área para construção de uma pilha de rejeitos de mineração — a CSN considera a obra indispensável para a produção da Casa de Pedra, a segunda maior reserva de minério de ferro do Brasil. O empreendimento foi declarado de utilidade pública por decreto assinado por Zema, em julho de 2024, que autorizou a desapropriação de 261 hectares.
A Federação Quilombola N’Golo, representante de comunidades quilombolas de Minas Gerais, sustenta que parte dessa área se sobrepõe ao território de Santa Quitéria. Por isso, pediu à Justiça a suspensão do decreto, além da realização de consulta prévia, livre e informada, conforme previsto na Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), da qual o Brasil é signatário.
Na contestação apresentada à 8ª Vara Federal de Belo Horizonte, o escritório Décio Freire — com clientes entre cinco das dez maiores empresas do país — afirma que a ação dos quilombolas é “prematura” e “infundada”.
Argumenta também que o decreto de desapropriação foi assinado por Zema quase um ano antes da autodefinição da comunidade como quilombola e da certificação da Fundação Palmares, em julho.
Órgão federal vinculado ao Ministério da Cultura, a Fundação Palmares reconhece oficialmente comunidades quilombolas e garante acesso a políticas públicas específicas. Já a concessão do título de propriedade depende de procedimento conduzido pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Para a CSN, sem a anuência do Incra, não existiria território formalmente reconhecido em Santa Quitéria.
Santa Quitéria foi reconhecida em julho como quilombola pela Fundação Palmares
“Eu fico brava demais com esse papo. Presta atenção: nós somos de 1734 e a CSN foi criada em 1941. Antes deles pensarem que poderiam existir, a comunidade já existia”, rebate a liderança Aline Soares Marcos, moradora de Santa Quitéria. A referência é a data da inauguração da capela da comunidade, erguida por pessoas escravizadas e tombada como patrimônio histórico municipal.
“Quem tem o direito de dizer se é ou não é quilombola é a comunidade, e não a CSN ou o Estado”, afirma o advogado Matheus Mendonça, que representa os moradores. Ele cita o Decreto 4.887 de 2003, que estabelece a autoatribuição como critério para o reconhecimento de comunidades quilombolas, além da ancestralidade negra ligada à resistência contra a escravidão.
Esse critério chegou a ser questionado no Supremo Tribunal Federal (STF), na ADI 3239, apresentada pelo PFL (partido que após fusões hoje compõe o União Brasil), mas foi validado pelos ministros. “A tentativa de negar a existência de Santa Quitéria é mais uma violação de direitos humanos”, afirma o advogado.
O reconhecimento oficial de Santa Quitéria pela Fundação Palmares ocorreu em julho. Para celebrar, os moradores organizaram uma missa na capela tricentenária, acompanhada pelo grupo de Folia de Reis. Na homilia, o padre Antônio Claret comparou a disputa à passagem bíblica de Davi e Golias, relacionando a luta dos quilombolas à desproporção de forças diante da mineradora.

Enquanto a comunidade vê no decreto de desapropriação uma violação de direitos, a CSN sustenta, tanto na Justiça quanto em audiências públicas, que não havia “qualquer informação” sobre quilombolas na área em 2024. Dessa forma, não caberia a consulta prevista em tratados internacionais.
Paralelamente ao decreto de Zema de julho do ano passado, a CSN chegou a negociar a compra de áreas com algumas famílias. Porém, moradores de terrenos na entrada da comunidade Santa Quitéria resistem ao projeto. Como a mineradora não conseguiu comprar os terrenos, tenta usar o decreto do governador para levar a cabo o empreendimento. Caso seja de fato construída, a pilha de rejeitos ficará próxima a 1 km de distância da comunidade, o que levou algumas casas a serem alvos da desapropriação autorizada por Zema.
Em outro processo acessado pela reportagem, a CSN pede a posse imediata de um terreno de 10,6 hectares em Santa Quitéria, cujo proprietário não aceitou a proposta de compra. Na petição, o escritório Décio Freire associa a decisão judicial ao impacto econômico da companhia, ao afirmar que a CSN é a segunda maior exportadora de ferro do país, responde por 75% da arrecadação de royalties em Congonhas, emprega mais de 10 mil pessoas e projeta investir R$ 30 bilhões.
Diretor da CSN era do primeiro escalão do governo Zema
O diretor de Investimentos da CSN, Otto Levy, tornou-se a principal voz da empresa em audiências e reuniões com autoridades. Engenheiro metalúrgico, foi secretário de Planejamento de Zema até abril de 2021 e, menos de dois meses após a saída, assumiu o cargo de direção na mineradora. Três anos depois, a companhia foi beneficiada pelo decreto que autorizou as desapropriações em Santa Quitéria, o que reacendeu questionamentos sobre possível conflito de interesses.
A legislação mineira prevê quarentena de quatro meses para ex-secretários antes de eles assumirem cargos em empresas privadas relacionadas às suas áreas de atuação. Também veda, “a qualquer tempo”, o uso de informações privilegiadas obtidas no serviço público para obter vantagens privadas ou influenciar decisões com impacto econômico e regulatório.

“Quem deve explicações é o Otto”, afirma o advogado Matheus Mendonça. “Ele precisa dizer por que fazia parte da cúpula do governo, saiu do cargo e, em menos de dois meses, já estava na CSN. Depois, a empresa recebe um decreto que, na prática, permite expulsar as pessoas do território”.
A Repórter Brasil procurou Otto Levy, a CSN e o governo de Minas Gerais, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
À mineradora, foram enviadas perguntas sobre a tentativa de contestar a identidade quilombola de Santa Quitéria na Justiça, os impactos sociais denunciados por moradores e a contratação de Levy logo após sua saída do governo estadual.
Diretamente ao diretor, os questionamentos incluíram se ele cumpriu a quarentena prevista em lei e se teve participação em negociações ligadas ao decreto de desapropriação. Já ao governo mineiro, pediu-se posicionamento sobre a edição do decreto sem consulta prévia à comunidade e sobre eventuais conflitos de interesse na ida de Levy para a CSN, inclusive quanto à possível apuração pelo conselho de ética.
Levy participou de audiência pública na Câmara Municipal de Congonhas em 26 de agosto, quando se comprometeu a avaliar alternativas para evitar a desapropriação de três famílias que vivem na entrada de Santa Quitéria e se recusam a negociar com a mineradora. “Estamos estudando isso. O projeto inicial iria tirá-los”, afirmou.
Dias depois, contudo, em 1º de setembro, o escritório Décio Freire ingressou com o agravo pedindo a posse imediata de um dos terrenos, ampliando a pressão judicial sobre as desapropriações.
Na mesma reunião, o presidente da Câmara de Congonhas, o vereador Averaldo Pica-Pau (PL), expressou ao final da audiência insatisfação com a postura da CSN. Disse que a apresentação da mineradora foi “muito genérica”, e não respondeu às dúvidas da comunidade nem dos vereadores.
Durante a reunião, a líder comunitária Aline Soares Marcos acusou a CSN de tentar negar a identidade quilombola de Santa Quitéria e afirmou que a mineradora trata os moradores como se não tivessem valor.
Entre as provas reunidas pela comunidade estão certidões do Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana que registram o batismo de pessoas escravizadas na mesma capela há quase três séculos.
Desde a publicação do decreto de desapropriação, o cotidiano da comunidade mudou. Moradores relatam se sentir vigiados pelo voo constante de drones a serviço da empresa e intimidados com a circulação de caminhonetes em frente às casas.
“A gente se sente acuado”, disse o lavrador Sebastião Paulino Sobrinho. Seu vizinho Paulo Soares, de 76 anos, neto de pessoas escravizadas, teme não poder permanecer onde nasceu e viveu toda a vida: “Não tenho vontade de sair. Mas não sei se vão deixar a gente ficar”.

Modelo de pilhas de rejeito se tornou tendência após tragédias ambientais em MG
A substituição de barragens por pilhas de rejeito filtrado, como a projetada para Santa Quitéria, tornou-se tendência em Minas após os rompimentos de Mariana (2015) e Brumadinho (2019). O modelo reduz riscos de desastres, mas não elimina impactos ambientais e sociais.
Com 6 bilhões de toneladas em recursos e produção anual de 30 milhões de toneladas, a Casa de Pedra é a segunda maior reserva de ferro do Brasil, atrás apenas de Carajás, no Pará.
Santa Quitéria está a menos de 10 quilômetros do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, Patrimônio da Humanidade pela Unesco. No caminho até a comunidade, a mineração marca a paisagem. A barragem Casa de Pedra, da CSN, causa temor entre moradores vizinhos e levou ao fechamento de uma escola e de uma creche em 2019 por risco de rompimento.
Há ainda divergência sobre o uso da área em Santa Quitéria. Registros da Agência Nacional de Mineração mostram que a CSN obteve autorização para pesquisar ouro em 2021.
A empresa afirma ter pedido alteração para granito e nega interesse, mas a defasagem dos cadastros criou desconfiança entre os moradores, como a Repórter Brasil revelou em março.