A condenação de Jair Bolsonaro pelo Supremo Tribunal Federal representa um marco sem precedentes não apenas na história política brasileira, mas também no cenário internacional contemporâneo.
Pela primeira vez um ex-presidente eleito e identificado claramente com a extrema direita no contexto do pós-2008 foi sentenciado por planejar um golpe de Estado, em pleno funcionamento de uma democracia.
Contexto
O fim da Segunda Guerra Mundial para os países europeus e para os Estados Unidos, e o fim das ditaduras militares na América Latina, fizeram parecer que a extrema direita – aquela que se insurge contra a democracia representativa e contra a ideia de igualdade, ainda que formal, entre as pessoas – tivesse morrido.
Mas a crise do capitalismo de 2008 abriu caminho para a reascensão dessas forças políticas – que não faziam parte do mainstream, mas que nunca foram exterminadas por completo.
A crise de 2008 acentuou o problema distributivo. Partidos social-democratas e trabalhistas, que antes dominavam o cenário em muitos países, enfrentaram crises de identidade e perda de apoio eleitoral. A continuidade da adoção de políticas neoliberais, como pela Terceira Via de Tony Blair e na gestão de Barack Obama, alienou sua base tradicional.
Depois de 2008 houve também crescimento significativo de movimentos e candidaturas anti-establishment da esquerda com pauta fortemente distributivista que depois capitularam (lembremos do Syriza). Esses elementos abriram terreno para a extrema direita: Brexit, Trump, Nova Democracia na Grécia, Rassemblement National na França etc.
No Brasil, esses efeitos chegaram tardiamente, em meados de 2015, já que, durante a crise em si, Lula adotou políticas anticíclicas. Em 2018, todos sabemos, foi eleito Bolsonaro, hoje condenado.
Ineditismo
Marine Le Pen, na França, foi condenada recentemente por fraude no uso de fundos do Parlamento Europeu, mas nunca chegou à presidência – e tampouco seu caso se assemelha à tentativa de golpe de Estado. Matteo Salvini, vice-primeiro-ministro na Itália, responde a processo por acusações relacionadas à detenção ilegal de 100 migrantes, sem condenação. Rodrigo Duterte, ex-presidente das Filipinas, foi preso por determinação do Tribunal Penal Internacional.
Bolsonaro, portanto, inaugura uma nova categoria: o primeiro ex-presidente de extrema direita contemporânea condenado por uma jurisdição nacional por atentar contra a ordem democrática.
O peso histórico
Comparações com o passado ajudam a dimensionar o alcance deste momento. No pré e pós-Segunda Guerra Mundial, líderes fascistas ou colaboracionistas foram punidos — Philippe Pétain na França, Ion Antonescu na Romênia, Hideki Tojo no Japão e dirigentes nazistas em Nuremberg. Mas todos esses casos ocorreram em contextos de guerra, ocupação militar e colapso de regimes. Não foi a própria democracia nacional, em pleno funcionamento institucional, a julgar e condenar seus ex-dirigentes por crimes contra a ordem constitucional.
É nesse ponto que o caso Bolsonaro se diferencia: não houve guerra civil, invasão estrangeira ou colapso estatal. Houve, sim, a ativação dos mecanismos internos de uma democracia para punir um ex-presidente que tentou subvertê-la. O oposto, todos sabem, mas vale registrar, do que ocorreu naquela que se considera a nação mais democrática do mundo.
Justiça de transição que não tivemos
O caso de Bolsonaro, porém, lembra exemplos de justiça de transição em países vizinhos.
Na Argentina, Jorge Rafael Videla, foi condenado por crimes contra a humanidade e morreu preso em 2013. Já no Chile, Augusto Pinochet – alvo de imensa admiração de Bolsonaro — foi alvo de inúmeros processos por tortura e corrupção, mas morreu em 2006 sem condenação definitiva. O peruano Alberto Fujimori foi sentenciado, em 2009, a 25 anos de prisão por violações aos direitos humanos.
O Brasil, diferentemente, perdoou os agentes do Estado que cometeram crimes de lesa humanidade na ditadura iniciada em 1964, mas a condenação de três generais, um, almirante e de Bolsonaro – defensor da ditadura e ungido pelos herdeiros daquele golpe – não deixa de, além de fazer justiça com o presente e com o futuro, fazer uma justiça histórica, ainda que tardia.
*Marina Basso Lacerda, doutora com pós-doutorado em Ciência Política, pesquisadora do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania da FFLCH/USP, autora do livro ‘O Novo Conservadorismo Brasileiro: de Reagan a Bolsonaro’ (Zouk, 2024, 2 ed.), finalista do Prêmio Jabuti de Ciências Sociais e vencedor do Prêmio Minuano de Literatura.