Lançado neste sábado (13), durante a programação do 11º Encontro e Feira dos Povos do Cerrado, o dossiê Terra e Território no Cerrado denuncia o ecogenocídio no bioma. O documento revela não apenas a devastação ambiental causada pelo agronegócio e pelo desmatamento, mas também a ameaça ao modo de viver e à cultura dos povos cerratenses, como comunidades tradicionais indígenas, quilombolas, ribeirinhas e camponesas.
O dossiê de 155 páginas, produzido pela Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, reúne indicadores de duas décadas, entre os anos 2000 e 2021. Os dados apresentados apontam que a área desmatada no bioma cresceu 40%, com uma média de 1,45 milhão de hectares perdidos por ano. Em 2000, foram registrados 71,8 milhões de hectares desmatados; já em 2021, esse número chegou a 100,77 milhões de hectares
A publicação integra a série editorial Eco-Genocídio no Cerrado destinadas a sistematizar as denúncias de racismo fundiário e ambiental, caracterizando um processo sistemático de ecocídio do Cerrado e genocídio de seus povos. Segundo Diana Aguiar, assessora da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e professora da Universidade Federal da Bahia (Ufba), o termo “ecocídio do Cerrado” descreve os graves danos e destruição causados pela expansão acelerada da fronteira agrícola sobre o bioma ao longo do tempo.

Incentivo do Estado à ocupação predatória
O dossiê denuncia o incentivo do Estado brasileiro à ocupação predatória do Cerrado desde a década de 1970, com a expansão da fronteira agrícola, por meio de projetos de colonização, abertura de estradas, crédito rural e conivência com a grilagem de terras e o desmatamento. A análise também aponta o impacto do aumento do preço das terras em regiões de colonização mais antiga e da valorização das commodities nos mercados internacionais, entre outros fatores.
“As ocupações predatórias promovidas pelo agronegócio foi desenhada e dirigida pelo Estado brasileiro, em articulação com Estados estrangeiros e agentes privados nacionais e estrangeiros, sendo os grandes responsáveis na acusação pelo crime de ecogenocídio”, observa Diana Aguiar.
O relatório também destaca que, desde 1895, o Estado detém grande parte do domínio sobre essas terras, mas não garantiu a regularização fundiária prevista na Constituição de 1988, como a titulação de territórios tradicionais, assentamentos de reforma agrária e proteção ambiental. As organizações chamam isso de “36 anos de omissão do Estado brasileiro”.
Grilagem verde
A análise mostra que o desmatamento e a grilagem de terras se consolidaram como um binômio-base do ecogenocídio no Cerrado, promovendo, ao mesmo tempo, a devastação ambiental e a expulsão dos povos cerradeiros de seus territórios.
Na Bacia do Rio Corrente, no oeste da Bahia, comunidades de fundo e fecho de pasto ilustram uma nova ameaça: a chamada “grilagem verde”. O levantamento aponta que 1.069 reservas legais foram registradas de forma sobreposta a territórios coletivos, somando 82,3 mil hectares apropriados. Essas áreas aparecem divididas entre reservas propostas, aprovadas e já averbadas, em um uso distorcido da legislação ambiental como instrumento de usurpação territorial.
Na prática, terras comunitárias que garantem a preservação do Cerrado e a sobrevivência de gerações camponesas são reivindicadas por grandes proprietários e empresas, reforçando a insegurança fundiária e aprofundando o processo de ecogenocídio.

Povos do Cerrado

Para a professora Diana Aguiar, da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, o destino do bioma e de seus povos está profundamente entrelaçado, o que dá origem ao conceito de ecogenocídio: um projeto de desenvolvimento que se sustenta no extermínio de povos e territórios em nome do lucro.
“Por um lado, o ecocídio do Cerrado inviabiliza as bases materiais da reprodução social e da existência dos povos cerradeiros como povos culturalmente diferenciados, promovendo, portanto, o seu genocídio. Por outro, a destruição dos modos de vida facilita o ecocídio, porque são esses povos que mantêm o Cerrado em pé”, explica.
No levantamento de 2019, constatou-se que no Brasil há atualmente 5.972 quilombos presentes em 1.674 municípios de 24 estados, em todas as regiões e biomas do Brasil. Dessas, 749 encontram-se no Cerrado contínuo e 806 em seus ecótonos, totalizando 1.555. Já comunidades indígenas o levantamento dá algumas pistas, ao indicar a existência de 7.424 localidades indígenas em todo o país (IBGE) Delas, 1.017 estão no Cerrado contínuo e 779 em suas áreas de transição ou ecótonos.
Aguiar ressalta que uma comunidade não precisa passar pelo extermínio físico para ser vítima de genocídio. “A inviabilização da cultura, dos modos de vida e da identidade cultural é o que define o ecogenocídio”, afirma. Para ela, esse entendimento pode se tornar referência em processos de luta por direitos em outras partes do mundo, constituindo inclusive nova jurisprudência para o próprio Tribunal Permanente dos Povos (TPP).
O dossiê apresenta o mapa da Bacia do Rio Corrente, no oeste da Bahia, revelando um processo acelerado de destruição ambiental e social que expõe a face mais violenta do agronegócio no Matopiba. Mais de 1,5 milhão de hectares do bioma foram devastados nas últimas quatro décadas. O avanço das monoculturas de soja, milho e algodão não apenas arrasa a biodiversidade, como ameaça a sobrevivência de dezenas de comunidades camponesas que praticam o manejo coletivo conhecido como fundo e fecho de pasto.
O mapeamento mostra ainda que, até o ano 2000, haviam sido destruídos 639,5 mil hectares de Cerrado. Nos vinte anos seguintes, entre 2001 e 2020, esse número saltou para 880,7 mil hectares, revelando um ritmo de devastação cada vez mais acelerado. As manchas vermelhas espalhadas pelo mapa escancaram a expansão do agronegócio, enquanto os territórios tradicionais, marcados em verde, resistem cercados por fazendas e áreas desmatadas.

O impacto das monoculturas

O relatório aponta que a expansão da fronteira da soja e de outras commodities ganhou força após a crise de segurança alimentar de 2008/2009. À época, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) realizou o seminário Como alimentar o mundo em 2050, no qual a América Latina foi destacada como uma das principais fronteiras agrícolas globais. Segundo o levantamento, cerca de 90% das terras agricultáveis remanescentes — estimadas em 1,8 bilhão de hectares nos países em desenvolvimento — estão concentradas na América Latina e na África Subsaariana. Apenas 13 países, entre eles o Brasil, concentram dois terços desse total.
Nesse cenário, o Cerrado se tornou o principal alvo do agronegócio, transformado em projeto de Estado para expansão da chamada “fronteira agrícola”. O dossiê denuncia que essa ocupação predatória ameaça cerca de 40 territórios de fundo e fecho de pasto — áreas coletivas fundamentais para a agricultura, a criação de animais, a preservação das veredas e a manutenção da vida comunitária. Esses espaços, essenciais para a segurança alimentar e a conservação da água, sofrem hoje com cercamento, contaminação por agrotóxicos e expulsão silenciosa de famílias.
Um dos mapas apresentados mostra que o desmatamento na Bacia do Rio Corrente, no oeste da Bahia, coloca em risco não apenas os recursos hídricos da região, mas também grandes bacias hidrográficas do país. Conhecido como a “caixa d’água do Brasil”, o Cerrado está sendo destruído por um modelo econômico que concentra terras, arrasa a sociobiodiversidade e compromete a possibilidade de um futuro sustentável.
O relatório ainda lista as 10 cidades que mais desmataram o Cerrado nos últimos 20 anos, a maioria na região do Matopiba: Formosa do Rio Preto (BA), São Desidério (BA), Correntina (BA), Balsas (MA), Baixa Grande do Ribeiro (PI), Jaborandi (BA), Urucu (PI), Paranatinga (MT), Cocalinho (MT) e Grajaú (MA).

Por fim, o estudo faz um comparativo entre biomas: o Cerrado já perdeu 100,77 milhões de hectares — 35% a mais que a Amazônia, onde o desmatamento acumulado chega a 74,69 milhões de hectares.

Entre políticas e conjunturas
O encontro e a feira ocorreram na semana do Dia Nacional do Cerrado, 11 de setembro, coincidindo com a primeira condenação de Jair Bolsonaro e militares pelo STF. “O ecocídio do Cerrado e o genocídio de seus povos não começaram no governo Bolsonaro, mas se agravaram nesse período. Era fundamental dar nome a essas violências históricas e sistemáticas, que têm origem na ditadura militar-empresarial e na expansão da fronteira agrícola desde a década de 1970”, afirma.
Para Aguiar, a responsabilização de Bolsonaro e aliados é simbólica para a sociedade, mas o ecogenocídio segue em curso. “O povo brasileiro, o STF e as instituições apontando para a necessidade de responsabilizar os culpados pela tentativa de golpe. Isso, por si só, não encerra o ecogenocídio, que segue em curso, ainda que em um contexto menos acirrado”.
O momento, na avaliação de Diana Aguiar, é propício para o Estado repensar as políticas e investir no Cerrado. “Mas pode ser um momento para repensarmos a trajetória do Estado brasileiro em relação ao Cerrado, para que essa região ecológica seja, enfim, valorizada por tudo o que representa: o berço das águas, a savana mais biodiversa do planeta, casa dos territórios de inúmeros povos indígenas e povos e comunidades tradicionais”, conclui Aguiar.
O dossiê completo está disponível no site da Campanha em Defesa do Cerrado.