O governo do Brasil anunciou em agosto o lançamento do Plano Brasil Soberano, um conjunto de medidas em resposta ao tarifaço, um pacote de aumentos tarifários sobre a importação de diversos produtos brasileiros anunciado pelo governo Trump. Dentre as medidas para o fortalecimento do setor produtivo está a autorização extraordinária para que União, estados e municípios comprem alimentos que deixam de ser exportados para os Estados Unidos em virtude da represália trumpista. Abre-se a possibilidade de contratação direta, com dispensa de licitação, e processos simplificados de contratação e definição de preços.
Trata-se de um procedimento com alguma semelhança às regras e instrumentos do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e das compras da agricultura familiar no âmbito do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), instituídos com o objetivo de democratizar o fornecimento de alimentos para esse mercado, até então muito centralizados em distribuidores e inacessível para o segmento .
Os gêneros alimentícios elegíveis são açaí, uva, água de coco, mel, manga, pescados e castanhas. As contratações poderão ser feitas com pessoas jurídicas que vendem diretamente aos EUA, ou por produtores que fornecem direta ou indiretamente para pessoas jurídicas exportadoras, mediante autodeclaração de perda na exportação para aquele país. As aquisições poderão ser feitas pelos governos federal, estaduais e municipais com o orçamento disponível em programas públicos de alimentação como o PAA e o Pnae, e por meio de compras institucionais das Forças Armadas, hospitais públicos e universidades, dentre outros. Ao que parece, não há recursos financeiros adicionais destinados ao cumprimento da medida, o que certamente tensionará o orçamento já escasso e de uso anual programado do PAA, bem como o percentual de compras da agricultura familiar do Pnae.
O que a princípio se apresenta como uma ação heroica do em prol da soberania nacional pode desvirtuar uma longa trajetória que possibilita a dispensa de atravessadores e a promoção de sistemas locais de produção, abastecimento e consumo, para a inclusão produtiva da agricultura familiar. Muito provavelmente os grandes beneficiários desta medida serão os que têm maior entrada e capacidade de negociação com os atores governamentais, ou seja, as empresas exportadoras, as distribuidoras e o agronegócio.
Se não forem estabelecidas medidas de facilitação, priorização e monitoramento do acesso de agricultores familiares, assentados da reforma agrária e povos e comunidades tradicionais aos instrumentos excepcionalmente criados para contenção do tarifaço, nem instituídos mecanismos de proteção às compras da agricultura familiar no âmbito do Pnae, não há garantias de que seja mantida a perspectiva de democratização e ampliação do acesso dessa política. O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) já manifestou preocupações similares, recomendando ainda que tais grupos sociais sejam mobilizados e escutados. Despertam especial preocupação as repercussões sobre a alimentação escolar, na medida em que os novos agentes comerciais exportadores passarão a disputar o orçamento do Pnae com condições muito favoráveis, dada a possibilidade de compra direta com dispensa de licitação, e preços que destoam dos praticados, uma vez que serão definidos pela média, com base em pesquisa entre os potenciais fornecedores exportadores.
Os novos contratos para a aquisição excepcional de gêneros alimentícios afetados pelo tarifaço poderão ser firmados até janeiro, impactando os orçamentos previstos para 2025 e 2026. Na prática, nada impede, por exemplo, que empresas exportadoras, a preços provavelmente maiores, ocupem o lugar de agricultores familiares, ribeirinhos, pescadores artesanais e indígenas no fornecimento de açaí, pescado e castanhas para a alimentação escolar, o que hoje se dá por meio de chamadas públicas de governos estaduais e municipais. Ou que a uva, a manga e a água de coco, produzidas em grande escala, substituam outras frutas e polpas compradas localmente e diretamente dos agricultores familiares e povos e comunidades tradicionais.
Cabe ainda lembrar que, atualmente, o FNDE não conta com um sistema de prestação de contas transparente e acessível para o monitoramento das aquisições de alimentos, e que desde 2022 não são divulgados dados que demonstram o percentual de compras da agricultura familiar por parte das entidades executoras. A não ser que se crie um sistema próprio de monitoramento da nova modalidade de aquisição de alimentos, não há formas possíveis de acompanhar os desdobramentos da medida.
Considerando esse conjunto de fatores, faz-se necessária uma avaliação sobre quais são as possibilidades de compras institucionais de alimentos mais adequados para absorver os alimentos que deixarão de ser exportados, e que não poderão ser adquiridos diretamente da agricultura familiar, caso dos fornecidos por pessoas jurídicas exportadoras. Pnae e PAA têm como princípio basilar a promoção da economia local, enquanto as compras institucionais das Forças Armadas, por exemplo, não estão associadas a tal finalidade, o que as faria mais adequadas para o escoamento de excedentes do setor exportador.
Não há dúvidas de que o pacote anunciado pelo governo federal é de grande importância para a proteção da economia nacional. Entretanto, no que diz respeito a políticas de segurança alimentar e nutricional, não se pode deixar de observar os princípios e diretrizes que as orientam, sob o risco de enfraquecer ou desvirtuar sua trajetória rumo a sistemas alimentares mais justos, saudáveis e sustentáveis.
*Mariana Santarelli é coordenadora do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) e integrante do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN); Maíra Miranda é assessora de Incidência Política da FIAN Brasil – Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas