A Conferência Livre de Direitos Humanos Ditadura Nunca Mais, constituída por 27 entidades e associações da sociedade civil gaúcha, está realizando movimento em todos os meios possíveis para a preservação da memória e da justiça em Porto Alegre.
O principal foco é o imóvel conhecido como Dopinho, na rua Santo Antônio, 600, Bairro Bom Fim, que serviu de centro de tortura, violação dos direitos humanos, prisão e sede de um grupo de referência no Cone Sul nos anos de 1964-65-66, tempos bárbaros da ditadura civil-militar e de profunda e dolorosa relevância histórica para o Brasil e que atualmente se encontra à venda. Pior é que a placa, denunciando o local como centro de barbáries, foi cimentada – talvez por quem queria vender o local, mas o Ministério Público do RS ordenou a sua reposição, finalmente recolocada em 2021.
A ideia para o local é transformar o imóvel em Centro de Memória para servir de exemplo para as gerações futuras do que nunca deveria acontecer e para que ninguém esqueça o que ali se passou, 60 anos depois. É um gesto de grande importância para a democracia e os direitos humanos, segundo carta divulgada pelo grupo.
O casarão da rua Santo Antônio, 600, teve a sua existência revelada em 1966 com a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, durante as investigações do “Caso das Mãos Amarradas”, referente ao sargento Manoel Raymundo Soares, encontrado morto na confluência das águas do rio Jacuí e do Guaíba. O Dopinho foi identificado, nessa investigação, como local de graves violações de direitos humanos. Havia sangue nas paredes, restos de materiais de tortura e roupas abandonadas.
O “Caso Ênio” também revela sua existência: Ênio de Oliveira, médico, declarou em entrevista ao jornalista José Mitchell (já falecido), na década de 1980, ter trabalhado no local separando fichas de alvos da ditadura. Já nos anos 2000, a solicitação de aposentadoria do delegado da Polícia Civil de Porto Alegre, José Luiz Carvalho Savi, trouxe à tona o chamado “Caso Savi”, ao reconhecer como “tempo de serviço” sua atuação como informante da Polícia.
Por fim, segundo a Comissão Nacional da Verdade (CNV) os testemunhos de Gilda Marinho e de Carlos Heitor Azevedo corroboram a existência do local como centro clandestino de violações da dignidade humana, conforme relata a Conferência Livre dos Direitos Humanos.

Propriedade particular
A violência brutal era o tom habitual da casa. De propriedade particular, o imóvel teve seu acesso restringido após estudos aprofundados, mas documentos, depoimentos e análises arquitetônicas revelaram o modus operandi da repressão e as marcas deixadas pela ditadura. Muita gente passou por ali como preso político ou como funcionário do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) – Dopinho, portanto, é um diminutivo do órgão chefe.
Marco da repressão, o local representa também um símbolo da luta pela verdade e pela justiça, inclusive para toda a América Latina, já que Porto Alegre foi ponto de encontro das ditaduras do Cone Sul – Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile. A preservação deste local enfrenta o negacionismo e o revisionismo histórico, possibilitando maior consciência crítica sobre o passado, um símbolo para as vítimas e familiares e atua na prevenção de novas violações.
No Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), mais precisamente no capítulo 15, foram identificados, em âmbito nacional, 230 espaços associados a graves violações de direitos humanos. O Rio Grande do Sul aparece com 39 locais reconhecidos (18 em Porto Alegre), sendo o estado com maior número no documento. Entre eles, o Dopinho.
Não é o primeiro movimento para ali instalar um museu da memória. Antes, em 2013, o agora vereador Pedro Ruas (PSol) fez todas as tratativas com o então prefeito José Fortunati e o ex-governador Tarso Genro para transformar a casa em um memorial. Nenhum deles cumpriu as promessas de desapropriação para transformar o local. Enfrentaram dificuldades. Integrantes do PSol (Pedro Ruas, Roberto Robaina, Fernanda Melchionna e Luciana Genro) promoveram no dia 18 de novembro de 2013 uma visita pública ao local para defender a sua manutenção.
Na atual iniciativa de diversas entidades e da sociedade civil as chances de dar certo são boas. “Ela nasce da imperiosa necessidade de resgatar e preservar a verdade histórica, ciente de que política pública não se limita à esfera governamental, separada do social, contudo depende de ações do Estado que a garantam.” Diante do atual cenário turbulento da política brasileira e gaúcha, porém, existe a certeza de que talvez demore um pouco mais do que as organizações esperam.
A carta conclama a união de todos gaúchos nesta empreitada de transformar a casa em um lugar de valorização da cultura dos direitos humanos. “Propomos que a esfera estatal possibilite a solução definitiva deste processo, que até agora só fez repetir a negação de uma marca de memória que já existe neste local”, informa a carta.
Havia tempos atrás na área inscrições em seus muros: “A memória, a verdade e a justiça exigem coragem”; “Ainda estamos aqui”; “Não à anistia”; e a mais recente, “O que é um pouco de tinta para paredes manchadas de sangue”, já retiradas pelos proprietários. O muro tem pintura nova. “As inscrições atestavam que não conseguimos esquecer aquilo que não nos permitem recordar. Estamos abertos ao diálogo, à colaboração e à articulação com todas as esferas da sociedade que compartilham deste ideal”, garantem os idealizadores.
Integrantes do grupo
APPOA – Associação Psicanalítica de Porto Alegre
Associação de Conservadores e Restauradores de Bens Culturais do RS – ACOR-RS
Associação de Mães e Pais Pela Democracia
Associação dos Amigos da Terreira da Tribo
Associação dos Arquivistas do Estado do Rio Grande do Sul – AARS
Associação de Ex-Presos e Perseguidos Políticos- AEPPP-RS
Atua Poa Todxs Nós
Casa Diógenes
Centro Acadêmico da Faculdade de Arquitetura PUCRS (CAFA/PUCRS)
Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos
Comitê Carlos de Ré
Coletivo Testemunho e Ação
Comissão da Verdade da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS
Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus – ICOM Brasil
Comitê Popular Esperançar
Conselho Internacional de Monumentos e Sítios/Brasil – ICOMOS Brasil
Diretório Acadêmico da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo UFGRS (DAFA/UFRGS)
Federação Nacional de Estudantes de Arquitetura e Urbanismo do Brasil – FeNEA
Instituto APPOA – Clínica, Intervenção e Pesquisa em Psicanálise
Instituto democracia e Cidadania – Passo Fundo
Instituto Psicanalítico de Passo Fundo
Instituto Sig – Psicanálise & Política
Movimento de Justiça e Direitos Humanos – MJDH
Museu das Memórias (In) Possíveis do Instituto APPOA
Núcleo de Pesquisa sobre Políticas de Memória – NUPPOME-UFPEL
PCdoB Passo Fundo/RS
Sigmund Freud Associação Psicanalítica
Placa

A placa, instalada em 2015 no local, e retirada pouco depois pela moradora da casa, foi recolocada no calçamento em frente através de um acordo com a promotora Ana Maria Moreira Marchesan, da Promotoria de Defesa do Meio Ambiente. Ela declarou que firmou um acordo para a recolocação da placa, que, segundo a moradora, estaria avariada e colocando em risco a segurança de pedestres. Ainda conforme a promotora, a placa deverá ser novamente confeccionada, com o mesmo tamanho e dizeres, com os gastos ficando sob responsabilidade da proprietária.
Em vez de 100 dias, demorou alguns anos, só reposta em 2021. A placa diz: “Primeiro centro clandestino de detenção do Cone Sul. No número 600 da rua Santo Antônio, funcionou estrutura paramilitar para sequestro, interrogatório, tortura e extermínio de pessoas ordenados pelo regime militar de 1964. O major Luiz Carlos Menna Barreto comandou o terror praticado por 28 militares, policiais, agentes do Dops e civis, até que apareceu no Guaíba, o corpo com as mãos amarradas de Manoel Raymundo Soares, que suportou 152 dias de tortura, inclusive no casarão. Em 1966, com paredes manchadas de sangue, o Dopinho foi desativado e os crimes ali cometidos ficaram impunes”.
A placa foi uma iniciativa do projeto Marcas da Memória, criado por meio de uma parceria entre o Movimento de Justiça e Direitos Humanos com a Prefeitura Municipal de Porto Alegre para identificar locais onde ocorreram violações de direitos humanos durante a ditadura.
O casarão que abrigou o Dopinho foi identificado como centro de tortura em junho de 2011. Em 2014, durante o governo Tarso Genro, o proprietário do imóvel concordou em vender o local ao poder público e disponibilizá-lo para a concretização do Memorial Ico Lisbôa*. O processo para a construção do memorial parou a partir da eleição de José Ivo Sartori para o governo do estado.
No dia 5 de maio de 2016, o então prefeito de Porto Alegre, José Fortunati, firmou um compromisso com representantes do Comitê Carlos de Ré da Verdade e Justiça, deputados estaduais e vereadores de que a prefeitura bancaria a desapropriação do prédio, o que acabou não acontecendo.
Ainda em 2016, representantes do Comitê Carlos de Ré da Verdade e Justiça denunciaram que o prédio estava sendo reformado, incluindo a instalação de uma piscina nos fundos do terreno. Os integrantes do comitê alegaram que, por se tratar de um prédio de interesse histórico no município de Porto Alegre, qualquer alteração precisaria ser aprovada pela prefeitura, o que não teria acontecido.
Consultadas, as assessorias da prefeitura e do estado preferem não se manifestar no momento até que novas posições oficiais sejam adotadas.
*Primogênito de sete irmãos, sendo um deles o músico Nei Lisboa, iniciou sua militância política na Juventude Estudantil Católica. Integrou o Partido Comunista Brasileiro (PCB), a Vanguarda Armada Revolucionária – Palmares (VAR-Palmares) e a Ação Libertadora Nacional (ALN). Esteve algum tempo em Cuba, retornando ao Brasil em 1971, na tentativa de reorganizar a Aliança Libertadora Nacional em Porto Alegre. Foi preso em circunstâncias desconhecidas em São Paulo, na primeira semana de setembro de 1972, e está desaparecido desde então. Supõe-se que tenha morrido poucos dias depois, sob tortura, aos 24 anos de idade.