O Ministério Público Federal (MPF) ingressou nesta semana com uma ação civil pública contra o governo do Rio Grande do Sul, questionando o formato do programa “400 Anos das Missões Jesuíticas Guaranis”, lançado para celebrar o legado histórico da região. Apesar de contar com um orçamento superior a R$ 50 milhões, o projeto, segundo o MPF, falha em garantir a participação efetiva do povo Guarani e não direciona recursos de maneira significativa às comunidades indígenas.
Para o MPF o programa , em sua forma atual, exclui a participação efetiva do povo Guarani e não direciona os recursos de maneira a beneficiar as comunidades indígenas.
De acordo com a ação, há um descompasso evidente entre o discurso oficial e a execução prática. Em 2024, o vice-governador Gabriel Souza (MDB) afirmou que o programa representaria não apenas um impulso econômico e turístico, mas também um “resgate histórico”, colocando os povos originários no centro das comemorações. A investigação do MPF, no entanto, identificou que a presença indígena na comissão responsável pelo programa é meramente simbólica e sem poder de decisão sobre projetos ou investimentos.
Menos de 1% para as comunidades Guarani
Os números reforçam a denúncia: apenas 0,6% do orçamento, cerca de R$ 330 mil, foi reservado às comunidades Guarani, destinados à construção de um centro de venda de artesanato. Já a quase totalidade dos recursos, mais de R$ 49 milhões, está direcionada para obras de infraestrutura turística, como requalificação de praças, parques e até melhorias em aeroporto.
Para o MPF, essa distribuição viola a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, que garante a consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas em iniciativas que afetem diretamente seus territórios e modos de vida.
O argumento ganha força diante do Diagnóstico das Comunidades Guarani no RS, elaborado pela Emater/RS-Ascar. O estudo aponta que 92% das aldeias enfrentam problemas habitacionais, 37% dependem de caminhões-pipa para acesso à água potável e 75% das escolas funcionam em espaços improvisados. Para o MPF, ignorar essas urgências em nome do turismo é perpetuar a exclusão histórica das comunidades Guarani.
Diante desse cenário, o órgão pede à Justiça Federal que suspenda as obras e os repasses do programa até que seja realizada uma reestruturação com participação paritária dos Guarani em seu comitê gestor. A ação também requer que o estado redirecione parte significativa dos recursos para atender às necessidades das aldeias, realize um pedido público de desculpas e pague aproximadamente R$ 49 milhões em danos morais coletivos, a serem aplicados na melhoria das condições de vida do povo Guarani.
Governo do RS diz que povo Guarani está no centro das comemorações
Em nota divulgada na quarta-feira (17), o governo do Rio Grande do Sul respondeu à ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal sobre o programa relacionado aos 400 anos das Missões Jesuíticas Guaranis, que serão completados em 2026. O Executivo afirma que os povos Guarani “estão no centro das comemorações” e que o processo de organização das celebrações ocorre em diálogo permanente com as comunidades, municípios e entidades representativas.
Segundo a nota, a Secretaria da Cultura (Sedac) conduz um processo recente e em construção, com reuniões mensais desde julho de 2025 e participação do Conselho Estadual do Povo Indígena (Cepi) e outras entidades, e pretende concluir a organização da comissão até a primeira quinzena de outubro. A nota ressalta que o calendário de atos e eventos está sendo elaborado e que novas ações podem ser incorporadas de forma participativa.
O governo esclarece que o investimento de R$ 50 milhões anunciado em junho de 2025 destina-se a obras de infraestrutura e a projetos culturais e turísticos para a região das Missões, mas que esse montante não constitui, por si só, um “programa específico” das efemérides. Do total anunciado, R$ 18 milhões constam do orçamento da Sedac; desses, R$ 10,6 milhões foram apontados como aplicados em ações de valorização direta da história guaranítica, incluindo a requalificação de museus e a criação de exposições de longa duração — uma no Museu Missioneiro (São Miguel das Missões), com investimento total de R$ 5,8 milhões (R$ 5,27 milhões do estado e R$ 527,22 mil de contrapartida municipal), e outra na Catedral Angelopolitana (Santo Ângelo), com aporte de R$ 5,3 milhões (R$ 5,33 milhões do estado e R$ 592,74 mil de contrapartida municipal).
A nota lista ainda outras ações do governo voltadas aos povos indígenas do estado, entre as quais: atendimento a 108 escolas indígenas com educação diferenciada; formação continuada de professores; planejamento de 11 novos projetos de construção de escolas; investimentos no programa Nenhuma Casa sem Banheiro e a construção de 50 módulos sanitários na Reserva Indígena do Ligeiro; R$ 23,8 milhões aplicados desde 2023 na qualificação de 26 escolas indígenas; convênios de apoio socioprodutivo e projetos de turismo comunitário; criação de ambulatórios de Saúde Indígena em Passo Fundo, Tenente Portela e Constantina; repasses mensais do programa Piaps; e investimento de R$ 3,9 milhões até 2025 em projetos ambientais e de restauração ecológica.
Por fim, o governo reafirma que não há exclusão das comunidades indígenas no processo de organização das celebrações, mas sim “um esforço contínuo” para que os 400 anos das Missões sejam um marco de reconhecimento e protagonismo guarani. Afirma manter-se aberto ao diálogo para aprimorar as ações do estado conforme o contexto normativo e administrativo.