Uma vigília em solidariedade ao povo palestino reuniu apoiadores neste sábado (20), na Praça da Matriz, em Porto Alegre. A atividade, que integrou o calendário internacional do Fim de Semana Global pelo Fim da Cumplicidade, convocado pela campanha de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), ocorreu das 9h às 21h com oficinas, apresentações artísticas e sessão de cinema.
Organizada pela Frente Gaúcha de Solidariedade ao Povo Palestino, a mobilização foi realizada em frente ao Palácio Piratini em protesto contra o memorando firmado em julho entre o governo Eduardo Leite (PSD) e a AEL Sistemas, subsidiária da indústria bélica israelense Elbit Systems, instalada em Porto Alegre.
Segundo Cláudia dos Santos, integrante da Frente, a escolha da Praça da Matriz tem ligação direta com esse acordo. Para ela, a vigília também cumpre o chamado internacional do BDS de realizar protestos entre 18 e 21 de setembro em frente a prédios de poderes políticos, jurídicos e religiosos. Entre as atrações artísticas teve a declamação de poesia da artista Mariele Aduké e do poeta palestino Mahmoud Darwish.
“É inadmissível que não haja rompimento”
Dirigente do Sindicato dos Servidores da Justiça do Estado do RS (Sindjus-RS), Fabiano Salazar criticou o “massacre em curso com objetivos econômicos e imobiliários” e também as declarações do ministro da Fazenda de Israel. Para ele, é urgente que o Brasil rompa relações diplomáticas e políticas com o “Estado genocida e sionista”, mesmo diante de pressões econômicas. “É inadmissível que não haja esse rompimento”, afirmou.
Já Priscila Voight, da Unidade Popular, destacou que a vigília também pressiona o governo estadual a cortar relações com empresas ligadas ao setor militar israelense. Ela lembrou que o secretário de Segurança de Porto Alegre, Alexandre Aragon, esteve recentemente em Israel, em meio a bombardeios, para firmar acordos de cooperação. “Essas tecnologias usadas lá são as mesmas que chegam aqui para atacar a população negra, a juventude periférica e os movimentos sociais”, denunciou.
Na ocasião, a Prefeitura de Porto Alegre lançou uma nota afirmando que Alexandre Aragon estava em Israel “para um curso voltado à segurança urbana, resiliência e tecnologia de defesa civil, assim como representantes de outros estados brasileiros.”
Santos ressaltou que é preciso denunciar a cumplicidade de instituições com o apartheid israelense e exigir medidas imediatas. “Para encerrar o genocídio, precisamos isolar economicamente o Estado ilegítimo de Israel, com embargo militar e energético abrangente, e levar os CEOs de empresas bélicas, como a AEL Sistemas, ao Tribunal Penal Internacional”, afirmou a integrante da Frente Gaúcha de Solidariedade ao Povo Palestino.
Para ela, o movimento está no “caminho certo”. “Os povos do mundo estão junto com a Palestina. É fundamental ampliar as campanhas de boicote, aumentar a pressão sobre governos e instâncias internacionais, tomar as ruas e fortalecer ações de sanção. Todo apoio também à Global Sumut Flotilha, que deve furar o cerco e levar esperança ao povo palestino”, completou.

Chamado internacional por sanções
Pela manhã a vigília contou com o painel sobre BDS, limpeza étnica na Palestina e as conexões com as lutas locais. A representante no Brasil do Comitê Nacional Palestino do BDS, Andressa Soares, destacou a urgência de ações internacionais diante da escalada de violência em Gaza. Segundo ela, o cenário atual é de “devastação total e limpeza étnica”, o que gera frustração e sensação de impotência. Ainda assim, reforçou que o povo palestino confia no “poder disruptivo” da articulação global para frear o genocídio.
Soares explicou que o movimento BDS atua em três frentes, boicote, desinvestimento e sanções, e que, no momento, a prioridade é pressionar governos a aplicarem sanções econômicas, diplomáticas e militares contra Israel. “O objetivo é asfixiar financeiramente o regime de apartheid, colonização e genocídio”, disse, lembrando que a estratégia segue o exemplo do boicote internacional que contribuiu para o fim do apartheid na África do Sul.
Ela recordou ainda que o chamado global por ações responde a uma resolução da Assembleia Geral da ONU, aprovada em setembro de 2024, que deu a Israel o prazo de um ano para retirar sua ocupação da Cisjordânia e de Gaza. “Esse prazo se encerrou agora, e Israel não cumpriu. Não podemos esperar que um Estado blindado e impune cumpra algo por vontade própria. Cabe aos países que apoiaram a resolução sancionarem Israel”, afirmou.
Para a ativista, a solidariedade precisa ser concreta e transversal, conectando-se às lutas de populações negras, periféricas e indígenas no Brasil e no mundo. “O que acontece lá é um teste para o que o poder corporativo e estatal pode fazer aqui no futuro”, alertou.
Ela defendeu também o boicote cultural e acadêmico, a não normalização das relações com Israel e o engajamento de universidades, sindicatos, organizações sociais e culturais. “Pode parecer pouco, mas coletivamente faz um impacto enorme”, disse, citando como exemplo a decisão da Colômbia de impor um embargo militar completo a Israel. “As pessoas precisam parar de morrer agora. O povo palestino está esgotado, mas conta com a nossa solidariedade. Não podemos nos dar ao luxo do desgaste diante de um genocídio televisionado sem precedentes na história.”

“A Nakba brasileira dura 525 anos”
O advogado representante da comunidade e da Frente Quilombola do RS, Onir de Araújo, fez paralelos entre a luta palestina e a resistência negra e originária no Brasil. “O povo palestino fala da Nakba que já dura 88 anos. No que se entende por Brasil, a nossa Nakba já dura 525 anos. O Estado brasileiro segue sendo colonial desde a sua fundação”, afirmou.
Araújo relembrou sua participação na Conferência de Durban (2001), organizada pela ONU, quando a delegação palestina colocou a reparação histórica no centro do debate. Para ele, essa também deve ser a prioridade no Brasil: “Não é tarefa individual, como querem nos fazer crer com políticas afirmativas, mas coletiva, parte de um processo de libertação nacional”.
Ele denunciou ainda ameaças ao Quilombo Kédi, em Porto Alegre, alvo de interesses imobiliários, relatando assédio, tentativas de remoção e até ameaças de morte feitas por uma empresa de segurança. “É a nova revogação da Lei Áurea em curso em Porto Alegre. Estamos diante de uma limpeza étnica”, alertou.
Araújo também criticou a política federal para quilombos, afirmando que títulos anunciados não garantem segurança jurídica. “O Judiciário relativiza direitos fundamentais, a União não executa demarcações e o Legislativo aprova medidas para arrebentar conquistas históricas. É o mesmo padrão de conivência internacional diante do genocídio em Gaza. Mas, como aprendemos com o povo palestino, não seremos livres de fato enquanto a Palestina não for livre do rio ao mar”, concluiu.

Luta por moradia e Palestina
O coordenador nacional do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), Luciano Schafer, lembrou que o movimento realizou 18 ocupações em diversas capitais do país, no último 7 de setembro, muitas delas batizadas de Palestina Livre. “Se hoje assistimos a um genocídio na Palestina, aqui também já tivemos, em 525 anos, inúmeras ‘faixas de Gaza’, com pessoas assassinadas e casas demolidas”, afirmou.
Ele comparou os despejos sofridos pelas ocupações urbanas no Brasil à expulsão de comunidades palestinas de seus territórios. “Isso sim é esbulho possessório: quando famílias vivem em suas casas e são expulsas. Diferente de prédios abandonados, sem uso, que nós ocupamos para garantir moradia”, disse.
Schafer citou ainda exemplos de criminalização do MLB, como a multa de R$ 100 mil imposta pelo grupo Pão de Açúcar e tentativas de enquadrar o movimento como organização terrorista. “É o mesmo mecanismo usado para deslegitimar o Hamas, que foi eleito como partido político e governo pelos palestinos, mas é tratado como terrorista”, afirmou.
Para ele, a luta pela moradia conecta resistências no Brasil e na Palestina: “O povo brasileiro vive sem casa, o povo palestino também. A lógica é a mesma: a reprodução do capital pelo mercado imobiliário, que expulsa e destrói. Por isso precisamos seguir mobilizando, organizando o nosso povo e denunciando esse ataque fascista, aqui e lá”.
Cultura como trincheira de resistência
A geógrafa e professora Ana Maria Sanches, integrante do grupo Palestino Terra, destacou a importância da dábika, dança tradicional em roda marcada por batidas no solo. “Essa é uma dança que ganhou status de resistência. É uma forma dos palestinos preservarem sua cultura e resistirem. É uma forma de luta”, explicou.
Nos espetáculos, o grupo tem incorporado elementos teatrais para retratar a violência, os bombardeios e também a resiliência, comparada por ela à oliveira: “Tu corta os galhos, tu decepa a árvore, mas se as raízes estão ali, elas rebrotam”.
Para Sanches, a cultura se torna trincheira: “A dança, o bordado, a fala, a música, a alimentação, tudo isso passa a reafirmar a existência e o vínculo com a terra”. Ela lembra que a expressão “Palestina livre, do rio ao mar” não se restringe à causa palestina: “É uma luta de vários povos em todo o mundo. A luta palestina toca no indígena que existe em nós, na nossa capacidade de resistir, preservando a natureza e a paisagem”.

“Palestina livre, do rio ao mar”: brasileiro de origem palestina denuncia genocídio e acordos comerciais com Israel
O brasileiro de origem palestina Nader Baja , nascido no Rio de Janeiro e primeira geração da família no país, denunciou a situação em Gaza e na Cisjordânia durante vigília em Porto Alegre. Para ele, trata-se de um “homicídio em curso” contra o povo palestino, com responsabilidades compartilhadas por governos e empresas brasileiras.
Segundo Baja, Gaza vive devastação: falta de água, luz, comida e medicamentos; hospitais, escolas, igrejas e mesquitas destruídos; e quase 700 mil estudantes sem acesso à educação. Na Cisjordânia, mais de mil pessoas foram mortas em dois anos, 15 mil ficaram feridas e mais de 9 mil palestinos presos. Ele lembra que o sofrimento não é recente: desde 1948, aldeias e cidades palestinas foram apagadas do mapa, transformando milhares em refugiados. “Oito em cada dez habitantes de Gaza, incluindo membros do Hamas, são filhos e netos desses refugiados”, afirma.
Integrante da Frente Gaúcha de Solidariedade ao Povo Palestino, Baja critica os acordos comerciais entre municípios/estados brasileiros e Israel. Uma das principais críticas é à presença da empresa AEL Sistemas, subsidiária da gigante militar israelense Elbit Systems, instalada em Porto Alegre. “Essa empresa fabrica drones e foguetes usados contra palestinos. Não podemos aceitar a presença de quem comete crimes contra o nosso povo”, afirma. Ele alerta ainda para o risco de tecnologias israelenses adquiridas por gestores públicos serem usadas também no Brasil.
Baja defende que políticos brasileiros que incentivam relações com Israel devem responder judicialmente. “Quando você incentiva relações comerciais, está incentivando a continuidade do crime. Isso é cumplicidade”, denuncia, lembrando que o Brasil é signatário da Convenção contra o Genocídio. Para ele, essa postura não é apenas um erro político, mas também uma quebra de ética e de legalidade.
Sobre a expressão “Palestina livre, do rio ao mar”, ele explica que significa que toda a Palestina deve pertencer aos palestinos, aberta a todas as religiões e povos. “Queremos uma Palestina para todos, independentemente de serem judeus, muçulmanos, cristãos ou ateus. Assim como Nelson Mandela disse: ‘África do Sul para todos’”, compara.
Ele distingue judaísmo e sionismo, definindo o segundo como “movimento político europeu baseado em mitos” e sustentado por mentiras repetidas, comparáveis à propaganda de Goebbels, ministro da Alemanha Nazista. Critica o apoio histórico e atual dos EUA a Israel, citando Alexander Haig, ex-secretário de Defesa, que em 1982 descreveu Israel como “o maior porta-aviões norte-americano, que custa barato”. Baja também recorre a vozes judaicas críticas ao sionismo, como Norman Finkelstein, autor de A Indústria do Holocausto, que disse que “o único direito que os israelenses têm é arrumar as malas e sair”.
Encerrando sua fala, destacou a urgência de respeitar os direitos dos palestinos. “Que eles tenham seu Estado e que a paz prevaleça, para eles e para o mundo inteiro.”
O Brasil de Fato procurou o governo do estado solicitando um posicionamento a respeito da relação com a empresa israelense. Não houve retorno até o fechamento desta reportagem. Espaço seguirá aberto para manifestação.