A Câmara Municipal de Porto Alegre realizou nesta quinta-feira (25) uma sessão solene para a entrega do título de Cidadão Emérito a Joaquim Pereira de Lucena Neto. A iniciativa foi proposta pela vereadora Grazi Araújo (Psol) e contou com a presença de representantes do movimento carnavalesco, lideranças políticas e autoridades.
Grazi Araújo destacou que a homenagem reconhece figuras que ajudaram a construir a história da capital, mas que muitas vezes não aparecem nos registros oficiais. Para ela, trazer o carnaval e a cultura popular ao espaço institucional é também reconhecer o protagonismo do povo negro na cidade.
“O carnaval está na Câmara porque o povo negro está na Câmara, porque estamos ocupando este espaço”, afirmou a vereadora.
Formação e múltiplas atuações
Nascido em Porto Alegre em 1948, Joaquim Lucena construiu uma trajetória marcada por diferentes frentes. Militar da Força Aérea Brasileira, atuou como inspetor e mecânico de aeronaves. Mais tarde, formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), onde também estudou música.
Sua ligação com o samba se consolidou em 1971, quando fundou a Academia de Samba Relâmpago. A escola de samba foi um dos marcos de sua atuação no carnaval, onde desempenhou funções como carnavalesco, mestre de bateria, compositor, ritmista e passista.
Lucena foi responsável por introduzir o repinique em Porto Alegre, após contato com o instrumento no Rio de Janeiro. Segundo ele, a iniciativa começou em família e resultou em novas sonoridades para as baterias locais, ganhando destaque inclusive em programas de televisão nacionais.
Comunicação e composições
Além de sua participação no carnaval, Lucena atuou como radialista e jornalista, levando o samba a diferentes meios de comunicação. Participou de programas em rádios como Gaúcha, Farroupilha, Santamariense e Imembuí, além de assinar colunas em jornais e revistas de Santa Maria.
Como compositor, criou sambas-enredo para diversas escolas da capital. Entre eles, destacam-se: “Sou o imperador até morrer” (Imperadores do Samba), “Me diz, meu povo, onde é que o samba vinga?” (Estado Maior da Restinga) e “Minha imperatriz querida, eu confesso o meu amor” (Imperatriz Dona Leopoldina).
Apesar do reconhecimento, Lucena ressaltou que considera mais simbólica a composição “Nem tudo que reluz é ouro, nem sempre o que balança cai”.
Gestão cultural e eventos populares
Entre 2005 e 2016, Lucena coordenou manifestações populares na Prefeitura de Porto Alegre. Nesse período, esteve à frente da criação de eventos que se tornaram referências, como a Descida da Borges e o Samba no Trem.
A Descida da Borges surgiu após a transferência do desfile oficial para o Complexo Cultural do Porto Seco, com o objetivo de manter a presença do carnaval no centro da cidade. Já o Samba no Trem ocorre anualmente no dia 2 de dezembro, Dia Nacional do Samba, em um percurso que parte da estação Mercado do Trensurb até o Vale do Sinos.
Lucena chegou a assumir interinamente a Secretaria Municipal de Cultura em 2010, consolidando sua inserção institucional no campo cultural.
A cultura negra e a cidade
Durante a cerimônia, Lucena fez referência à luta do povo negro em Porto Alegre, citando episódios de remoções históricas, como a das quitandeiras e lavadeiras da Praça da Alfândega no século 19, e mais tarde a transferência forçada de moradores da antiga Ilhota para a Restinga.
Segundo ele, a periferia se tornou espaço de resistência e produção cultural, onde o carnaval assumiu papel central. Em sua fala, defendeu a necessidade de democratizar o acesso às manifestações culturais e combater a exclusão racial.
“Um galo não faz um amanhã sozinho, ele precisa de outros galos”, disse Lucena, citando o poeta João Cabral de Melo Neto e reforçando a ideia de que sua trajetória sempre foi construída coletivamente.
Reconhecimento coletivo
A sessão contou com depoimentos de autoridades e personalidades ligadas ao carnaval. O presidente da União das Escolas de Samba de Porto Alegre (Uespa), Joarez Gutierres, lembrou que a Descida da Borges devolveu ao centro da cidade o sentimento de pertencimento dos carnavalescos.
O ex-prefeito José Fortunati destacou que Lucena mostrou a dimensão social e transformadora do carnaval, para além da festa. O jornalista Cláudio Brito recordou a importância de manter a Borges de Medeiros como espaço de encontro das escolas de samba. Já o deputado estadual Matheus Gomes (Psol) afirmou que a homenagem reforça que a história da população negra e trabalhadora nunca é feita individualmente.
Representando a Secretaria Municipal de Cultura, Cloves André ressaltou a necessidade de fortalecer as culturas populares e enfrentar o racismo ainda presente dentro do próprio carnaval.
“A vida só tem valor com samba”
Ao encerrar sua fala, Lucena agradeceu aos colegas que o acompanharam em sua trajetória e reforçou seu desejo de ver o Porto Seco consolidado como espaço vivo para o carnaval. Ele definiu sua filosofia de vida em uma frase que marcou a solenidade: “A vida só tem valor com samba”.