“A gente entrega minério de ferro para comprar aço”. A analogia do sociólogo brasileiro Sérgio Amadeu, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), resume a dupla perda de soberania digital que especialistas identificam no Sul Global: os países da região entregam dados valiosos às gigantes tecnológicas estadunidenses e, simultaneamente, perdem controle sobre informações sensíveis de seus próprios cidadãos.
Reunidos pelo Fórum Acadêmico do Sul Global em Xangai (China), os especialistas alertaram que países em desenvolvimento enfrentam crise de soberania digital, com empresas nacionais adotando postura de dependência em relação às big techs estadunidenses em setores como inteligência artificial e computação de alto desempenho.
“O que estamos enfrentando não é apenas atraso no desenvolvimento da economia digital. A maioria das nações do Sul Global não está garantindo sua própria soberania digital”, declarou Xiong Jie, secretário-geral do fórum. “Essas tecnologias e dados são controlados por corporações estadunidenses”.
Exploração digital espelha colonialismo histórico
Os especialistas compararam a extração de dados pelas big techs à exploração colonial de recursos naturais. Kambale Musavuli, consultor nacional de estratégia digital de Gana, traçou o paralelo: “As grandes empresas de tecnologia extraem esses dados sem pagar por eles, similar a como as potências coloniais pegariam carvão e cobalto de países como o Congo, pagando pouco ou nada”.
“É roubo, porque, ao sermos nossos países ignorantes no valor que os dados têm, essa entrega acaba sendo um roubo enorme. A gente entrega minério de ferro para comprar aço”, lamenta Sérgio Amadeu.
No continente africano, Musavuli observou como a influência externa tem moldado políticas digitais, impedindo o desenvolvimento de soluções autônomas. “Muitos países africanos enfrentam questões sobre oportunidades e desemprego e estão tentando descobrir como dar sentido a essa nova força na sociedade”, explica. “No entanto, eles não estão desenvolvendo essa estrutura por conta própria; são fortemente influenciados por países ocidentais”.
O especialista citou o caso de Gana, que começou a construir a estratégia nacional de IA. “Quando você lê o documento, vê o logotipo da GIZ [uma agência de cooperação alemã] na primeira página. Esta é uma política oficial do governo com o logotipo de um país estrangeiro”, criticou
A “atitude derrotista” de empresas nacionais
Recentemente, em entrevista com o Brasil de Fato, também em Xangai, o diretor de Internacionalização e Comércio Eletrônico do Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), Rafael Oliveira Ferreira, defendeu a “nuvem soberana” como “uma plataforma tecnológica em que as empresas, o governo brasileiro têm total controle e domínio sobre seus dados, sobre seu processamento, e a gente independe de outros países pra transacionar”, destacando que ela garante que “as entregas digitais do país continuem independente de ações geopolíticas de outros países”.
A Nuvem Soberana ou Nuvem do Governo brasileira está sob a alçada do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI). Segundo a pasta, com a infraestrutura, desenvolvida pelo Serpro e Dataprev, “dados que sustentam serviços e políticas públicas passam a ser processados e guardados em uma infraestrutura sob gestão do Estado”.
Em relação à infraestrutura não ser brasileira, Oliveira disse ao BdF que “todos os fornecedores de hardware hoje do mundo são internacionais”.
“É um tipo de conhecimento que é muito limitado, então, o Serpro tenta buscar parcerias com fornecedores do mundo todo”, concluiu.
“Eles estão dizendo que não há outra alternativa. Isso não é verdade”, diz Amadeu. “Você pode montar suas máquinas e trabalhar as interfaces de gestão dos data centers. Em vez de contratar consultor para ele indicar qual o melhor produto de big techs a comprar, contrate consultor para trazer os brasileiros que estão lá fora, construindo essas interfaces lá para as big techs, e monte aqui esses projetos”, defende o especialista.
Sérgio Amadeu insiste: “Não é verdade que a gente não tem condição de desenvolver essa tecnologia de nuvem”.
O professor da UFABC citou o data center do Comitê Gestor da Internet em São Paulo como exemplo de capacidade técnica brasileira. “Não é verdade que a gente não consegue montar uma infraestrutura útil para fazer treinamento de IA ou inferência de IA. Nós temos toda a condição de fazer isso”, reforça o especialista na entrevista em Xangai.
Xiong Jie concorda: “é uma atitude derrotista em relação ao desenvolvimento digital, acreditando que o Brasil é incapaz de construir sua própria infraestrutura digital”.
O especialista chinês também destaca que isso não acontece apenas no Brasil. Empresas como Infosys e Tata Consultancy Services alegam que “a Índia não pode desenvolver modelos fundamentais de IA, deixando esse trabalho para os ‘garotos do Vale do Silício'”, enquanto empresas indianas deveriam focar apenas em aplicações.
Falsa soberania das “nuvens soberanas”
“Na prática, os dados das empresas brasileiras ficam armazenados na plataforma de ‘nuvem soberana’ do Google, regida pelas leis dos EUA”, disse Jie sobre o projeto. “As autoridades brasileiras não podem acessar livremente esses dados, enquanto agências estadunidenses como a CIA podem”.
“Isso não tem nada de soberania. É um produto, uma peça de marketing dessas big techs para manter contratos”, criticou Sérgio Amadeu.
O sociólogo brasileiro destacou o Cloud Act, lei estadunidense que determina que empresas de tecnologia dos EUA sigam legislação nacional independentemente de onde operem fisicamente seus servidores.
Centro de Cooperação Brics e o exemplo da China
Diante desse cenário, os especialistas apontaram o Centro de Cooperação em IA do Brics — uma iniciativa criada pela China —, como alternativa viável para construir soberania digital. Segundo Jie, “a abordagem chinesa se mostra viável porque é negociável. Quando o Brasil tenta dialogar com empresas de tecnologia ocidentais sobre cogestão de dados, empresas como Google recusam discussões substantivas”.
O modelo apresentado pelo Brics inclui desenvolvimento colaborativo de infraestrutura, programas de transferência de tecnologia e capacitação de talentos locais.
Amadeu vê no Brics “oportunidade de ampliar a tecnodiversidade” e destacou que “se esse centro formar redes com projetos específicos, você pode construir governanças partilhadas”.
A China lançou em 2023 a Iniciativa para a Governança Global da IA, que defende “abordagem centrada nos povos no desenvolvimento da IA”.
Para Xiong Jie, a estratégia chinesa não deve ser vista apenas como alternativa mercantil à estadunidense.
As propostas chinesas representam uma tentativa de estabelecer uma nova ordem digital internacional, baseada no desenvolvimento mútuo, diferindo do modelo de “colonialismo digital” onde corporações simplesmente substituem umas às outras na exploração de recursos do Sul Global, defende o especialista chinês.