Gustavo Petro foi eleito presidente em 2022 em um capítulo que marcou o símbolo de uma vitória dos movimentos populares na Colômbia. O primeiro mandatário de esquerda no país foi resultado de um esforço coletivo, mas também de alianças políticas que tiveram uma influência determinante na gestão. Depois de 3 anos de mandato, o chefe do Executivo aprovou reformas importantes, mas a avaliação de parte das organizações progressistas é de que faltou pulso para um governo de esquerda e de que isso pode custar caro nas eleições de 2026.
Entre os movimentos populares, duas linhas ficaram muito claras sobre o governo de Petro. De um lado estão grupos que fizeram uma composição com a Casa Nariño. Apoiaram os projetos, saíram às ruas para defender o presidente e até ocuparam cargos dentro da gestão. Esse setor fez a leitura de que era preciso disputar os espaços de poder e tentar pautar o governo a partir de políticas de esquerda.
Do outro estão grupos que optaram por fazer pressão nas ruas e tentar puxar o governo para o campo progressista a partir de mobilizações populares e manifestações que deixassem clara a insatisfação com uma linha de conciliação com liberais e social-democratas. Na leitura desse espectro, Petro se pautou pela direita e teve resultados insatisfatórios nas políticas públicas, especialmente em questões cruciais para a qualidade de vida dos colombianos.
A principal crítica é a falta de enfrentamento à dominação do empresariado e ao formato do Estado colombiano. O país passou, ao longo das últimas décadas, por processos importantes de privatização. A venda de empresas estratégicas como a Carvões de Colômbia (Carbocol) em 2000, a Colômbia Telecomunicações (Telecom) em 2006, a Ecogas em 2006 e a Ecopetrol em 2011 consolidaram um modelo produtivo baseado no capital privado.
Além disso, a saúde na Colômbia é administrada em grande parte por empresas privadas. Para os movimentos populares que estiveram nas ruas para pressionar o governo, tocar nessas questões é importante para realmente atingir uma proposta de transformação da Colômbia.
Ouvir os setores mais à esquerda para repensar o Estado é uma demanda dos movimentos. Esteban Romero é integrante do Ciudad Movimiento de Medellin, organização que existe há 7 anos e discute a economia social no país. Ele entende que essa foi uma “linha vermelha” traçada pelo governo Petro na relação com as organizações progressistas.
“O governo limitou essa discussão, dos elementos do modelo econômico e a forma como nossa estrutura produtiva é estruturada: altamente privatizada e monopolista. E a participação de organizações sociais é mínima. A capacidade das organizações de base aqui de definir as linhas gerais de seus diferentes setores é mínima. Precisamos sentar e discutir como podemos equilibrar o lugar que certos conglomerados e impérios econômicos ocupam no modelo produtivo da Colômbia. E isso faltou”, disse ao Brasil de Fato.
Ao longo de 3 anos, Petro tentou, mas não conseguiu reestatizar empresas importantes e ampliar a participação do Estado na produção colombiana. Ele foi eleito tendo como principais bandeiras mudanças estruturais na saúde, nas leis trabalhistas e na aposentadoria. Depois de 2 anos tentando se equilibrar em meio a outras crises, o presidente passou a pressionar o Congresso e enviou propostas de reformas nessas três áreas.
Ele conseguiu aprovar as reformas trabalhista e da aposentadoria e está ainda buscando uma última cartada para a reforma na saúde.
Os movimentos reconhecem que a postura de enfrentamento ao Congresso foi importante, mas que os resultados acabaram sendo pautados pela direita. Diego Pinto é dirigente do grupo Poder e Unidade Popular (PUP) e entende que as reformas acabaram com um recorte feito pela direita nessa negociação com deputados e senadores.
“É aí que o governo mais falhou, porque tentou forçar a agenda de reformas negociando com setores que também são tradicionais, e isso tem um custo na busca dessa governabilidade. Há reformas muito importantes que não foram conquistadas no Congresso, e ele desmobilizou a luta do povo nas ruas por essas reformas, esperando que elas fossem aprovadas pelos deputados”, afirmou.
Acordos de paz
Uma das principais demandas da sociedade colombiana é pela pacificação nos confrontos armados. Se as grandes cidades hoje não experimentam uma onda de conflitos, o interior da Colômbia ainda registra diversos casos de violência que envolvem o Exército, grupos paramilitares, narcotraficantes e as guerrilhas armadas.
Petro assumiu com o que chamou de “política de paz total”, que prezava pelos diálogos e no desarmamento dos grupos. A política foi formalizada pela Lei 2272 de 2022, que transformou a paz em política de Estado e abriu duas vias: negociação política com guerrilhas e submissão à Justiça para grupos do crime organizado.
Os diálogos conseguiram avanços em algumas regiões, como Nariño, e conseguiram estabelecer acordos de cessar-fogo por períodos longos, mas terminou com um sabor de derrota para Petro.
O próprio presidente reconheceu que sua gestão não alcançou os resultados esperados. “Em meio a grandes dificuldades históricas, continuamos apostando na paz, porque obviamente este governo não alcançou a paz total”, disse ao Congresso em 20 de julho.
Isso porque uma série de acordos foram violados. Grupos guerrilheiros acusam o próprio Exército de “rasgar os documentos” e realizar ataques contra estruturas.
Pintos entende que há um erro estratégico na discussão dos acordos de paz. Ele afirma que o governo acabou negociando com todos os grupos da mesma forma, ao invés de priorizar as guerrilhas que tem uma luta política, o que deu ares de legalidade para organizações que estão envolvidas com crimes.
“Esse é um erro que este governo cometeu e é uma política que se provou um fracasso. Porque posicionou atores ilegais, particularmente criminosos herdeiros do paramilitarismo ou de novas expressões do paramilitarismo, e tentou dar influência para obter vitórias nas negociações. Está dando status político a grupos que não são políticos, equiparando insurgências, por exemplo, a essas organizações criminosas”, disse.
Esses grupos a que ele se refere são o Clã do Golfo, que está inserido no tráfico de drogas e na mineração ilegal, e aos paramilitares que foram criados para destruir as guerrilhas de esquerda do país.
Outra questão indicada pelos movimentos é a falta de participação de outras organizações nesse processo.
Pilar Liscano é dirigente do grupo Ciudadanos para la Paz, que trabalha justamente a pacificação do território. Ela avalia que a lei aprovada para a institucionalização da paz acabou tornando esses diálogos “genéricos” e desidrataram a promessa de uma solução política para os conflitos armados.
“A lei não aborda as questões estruturais e ainda existe uma dívida que sabemos que não depende apenas de um governo devido às implicações da injustiça social na Colômbia. O governo poderia ter insistido em manter fóruns de participação social porque era a oportunidade que tínhamos de contribuir a partir da sociedade. A possibilidade da sociedade colombiana participar da construção da paz com transformações estruturais foi simplesmente descartada”, afirmou.
Conquistas
Ainda que com muitas críticas, os movimentos entendem que houve avanços. Além das reformas, o principal passo foi simbólico, com a criação de uma “agenda de mudanças”. Petro insistiu desde o começo da gestão que aquele seria um “governo de transformações”. Trazer para a pauta pública a necessidade de uma reorientação da política colombiana é lida pelos setores de esquerda como um avanço em relação às gestões anteriores.
Tudo isso, de alguma forma, ampliou a presença dos movimentos nas estruturas de poder. Isso também teve um impacto em algumas políticas públicas. A principal delas foi a reforma agrária. A Agência Nacional de Terras (ANT) considera que, sob a atual gestão, uma nova lógica de distribuição de terras é um “compromisso fundamental” do órgão.
Para isso, o governo conseguiu aplicar uma política de recuperação de territórios que eram administrados pelo paramilitarismo e pelo tráfico de drogas. Operações policiais e processos jurídicos marcaram uma redistribuição de terras importante para o governo. Até 19 de setembro, ao menos 217 mil hectares de terras haviam sido recuperados pelo governo e repassados para camponeses e pequenos agricultores. Outros 401 mil foram comprados pelo Estado como parte da reforma agrária.
A presença de pessoas ligadas a organizações populares foi crucial para a implementação de políticas na linha da reforma agrária. Um exemplo é a ex-ministra de Agricultura, Jhenifer Mojica. Ela criou a Corporação para a Proteção e Desenvolvimento dos Territórios Rurais (Prodeter), que tinha como objetivo formar camponeses em direito agrário.
Mesmo avaliando que foram quadros que saíram da luta política, a leitura dos movimentos é de que isso ajudou a empurrar a política para a esquerda dentro do governo Petro.
Composição com a direita
O governo de Petro ficou marcado por alianças que já haviam sido prenunciadas nas eleições de 2022. Para se eleger, o presidente teve que compor com partidos de centro, como a coalizão Centro Esperança, e nomes como o ex-secretário-geral de Juan Manuel Santos, Alfonso Prada, e Alejandro Gaviria, que esteve no governo de Álvaro Uribe.
Além de um trabalho conjunto para o pleito, figuras que não são de esquerda estiveram com cargos de destaque na gestão de Petro em nome da “governabilidade”, como o atual ministro do Interior, Armando Benedetti, que fez parte da Coalizão Uribista.
“É um governo composto por segmentos do establishment colombiano. Não é um governo que integra plenamente o projeto e os compromissos do Estado social, mas sim um governo que também inclui, em algumas posições, as organizações sociais. O governo tem procurado, em parte, uma estratégia de consenso com setores do empresariado e até grupos conservadores”, afirmou Liscano.
Há uma leitura dentro do Pacto Histórico de que o governo precisa de mais tempo para implementar políticas sociais e não depender da direita como elemento de composição imprescindível. Para Esteban Romero, no entanto, essa percepção está equivocada e outras experiências latino-americanas já provaram isso.
“É um ciclo que todos os movimentos progressistas na América Latina passaram, que o problema é falta de tempo e não falta de estratégia. O peronismo na Argentina teve tempo, o PT no Brasil também teve várias gestões. A questão não é ter ou não mais 4 anos de governo, mas ter uma estratégia radical para isso”, disse.
Táticas dos movimentos
Ao longo dos últimos três anos, Petro também construiu uma agenda própria que é lida como positiva pelas esquerdas. Sempre que necessário, ele convocou a população para as ruas em um processo de mobilização constante. O presidente enfrentou uma série de denúncias do Ministério Público que, para o governo, eram “perseguições jurídicas”. Para enfrentar isso, chamou seus apoiadores para marchas.
Durante as discussões das reformas, pediu que os movimentos pressionassem pela aprovação dos projetos. O mandatário chegou a pedir uma greve nacional para que o Senado votasse pela reforma da saúde.
Essa postura mudou a própria forma de articulação dos movimentos, que passaram a reagir aos chamados do presidente e deixaram de propor manifestações de rua e protestos por pautas populares.
“Isso é positivo em um país que passa por um ciclo de mobilização social crescente há 10 anos, mesmo sob governos de direita. Mas a esquerda perdeu sua capacidade de iniciativa independente, e isso é uma falha nossa. Se o Petro nos convoca para a mobilização, nós saímos. Se o Petro não faz esse chamado, ninguém se mobiliza”, disse Romero.
Mesmo com um discurso crítico, a ideia é compor com uma frente de esquerda para as eleições presidenciais de 2026. A ideia é de que, estando no governo, é possível que os movimentos acumulem força e consigam expressar sua linha política dentro do espaço de poder, desde que com uma estratégia bem sucedida.
A coalizão governista chamada de Pacto Histórico está em processo de definição de um candidato e, na última quinta-feira (25) adiou as primárias que seriam realizadas em outubro. A direção do grupo tinha receio do crescimento de Daniel Quintero, ex-prefeito de Medellín e que participou do governo de Juan Manuel Santos. A decisão, no entanto, foi revertida pelo próprio presidente, que participou de uma videochamada com a direção do Pacto Histórico para pedir que a consulta fosse realizada em 26 de outubro.
Marcar uma posição nesse conflito é importante para os movimentos, que entendem que os nomes mais à esquerda são os do senador Iván Cepeda e da ex-ministra do Trabalho, Carolina Cocho.
Os grupos de esquerda entendem que a tendência é ampliar ainda mais o espectro político do governo na disputa presidencial, o que terá um impacto direto se o próximo presidente for eleito pela coalizão de Petro.
“Acredito que, para muitos movimentos sociais, esse tem sido o fim em si mesmo: ter um governo progressista. Mas a estratégia e a luta para além do governo a cada quatro anos, creio eu, foram reduzidas ao teto do progressismo, e não de uma transformação radical e até revolucionária”, concluiu Pinto.