Talvez em nenhum outro momento da história da humanidade se fez tão presente as notícias sobre as mais variadas violências nas redes de comunicação. Racismo, aporofobia (ódio aos pobres), homofobia e tantas outras fobias, estão cada vez mais sendo expressas.
Há quem diga que um presidente que prega o ódio, não sente empatia, não consegue pensar além da bolha e do lucro do capitalismo, seja o maior fomentador de tantas desavenças entre os seres. E é verdade. A humanidade construiu a sua História em bases muito fortes desse mesmo ódio.
Foi alimentada e sustentada desde sempre por essas divisões e por esses medos que, hoje, ainda se traduzem no desrespeito aos direitos humanos de outrem.
Quando olhamos para trás, vemos a história de Jesus, por exemplo, essas pessoas já estavam lá. Gritando, aplaudindo, enquanto Ele era pregado na cruz. No tempo da dita "Santa Inquisição", as pessoas eram denunciadas, perseguidas, julgadas e condenadas (eram também queimadas vivas em praça pública) elas também estavam lá, pérfidas, aplaudindo e esbravejando. Quando pensamos um pouco mais pra cá, nos tempos quando pessoas negras e indígenas eram escravizadas para benefícios de alguns de outras raças, essas pessoas também já estavam lá. E quando adentramos a contemporaneidade e falamos sobre os mais variados tipos de abusos, essas pessoas ainda estão aqui e naturalizam vários tipos de violências.
A realidade, é que muitos tiranos, muitos abusadores, muitos violadores e estupradores, fazem parte da humanidade e, através de toda a sua crueldade, são os que estão nos espaços de poder, nas classes mais abastadas e nos lugares de tomada de decisões.
Um dos assuntos importantes que tem tomado conta das redes sociais nos últimos dias é o caso da menina de 10 anos de São Mateus, no Espírito Santo que foi abusada sexualmente pelo tio de 33 anos, durante 4 anos. A violência só foi descoberta após a menina ter recebido o diagnóstico da gravidez em uma consulta no hospital.
O caso trouxe à tona um debate emergente que é a discussão sobre o aborto. Embora o Artigo 128 do Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940, afirma que não se pune o aborto praticado por médico em alguns casos como de gravidez resultante de estupro e de acordo com a decisão que deve ser exclusiva da mulher, fundamentalistas religiosos contestaram pública e agressivamente o direito da menina de 10 anos de realizar a cirurgia.
O estupro de vulneráveis é, infelizmente, mais comum do que se imagina. De acordo com os dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, 73% das crianças e adolescentes sofrem violência sexual dentro de suas próprias casas.
Temos 80 anos em que esta lei está ativa no país e uma cultura do estupro, que é estrutural, naturalizada pelo patriarcado e alimentado pelas construções fundamentalistas e do capitalismo. A questão é: por que estamos questionando o aborto necessário para uma criança de 10 anos (uma vez que criança não é mãe) e não a violência dos abusadores e o tipo de pena para que isso cesse? Por que, ao invés de irem ao hospital e colocar a vida da menina, novamente em risco, o ato de julgamento e punição, novamente, recai sobre a criança e não sobre o tio abusador?
A legislação preserva a identidade física e moral da criança. No Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069 de 13 de Julho de 1990 o Art. 17 nos diz que: “O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente".
E ainda assim, o tema é rasamente discutido sobre vida e morte. Precisamos falar sobre aborto. Precisamos falar sobre sexualidade, precisamos falar sobre o machismo e as estruturas do patriarcado, precisamos falar sobre esse fundamentalismo que limita a mente e a liberdade das pessoas. Precisamos repensar o sistema capitalista que não se importa com a vida humana. É uma situação grave.
Quando a gravidez é provocada pelo estupro, é um direito da vítima de entrar em um hospital e pedir que seja feito o aborto. Aqui a questão é de políticas públicas, de educação sexual, de classe e raça, do cuidado com crianças, adolescentes e mulheres e o direito de elas decidirem sobre seus corpos, sobre suas vidas. E quem fere isso, seja o Estado, seja o funcionário do hospital, o servidor público o padre ou os seguidores do fundamentalismo, é que são os verdadeiros criminosos.