Há cerca de 10 anos, ganhei da minha mãe um toca discos que ela encontrou numa loja de produtos eletrônicos usados no bairro que nasci e me criei, Conjunto José Walter, na periferia de Fortaleza. Até hoje não sei muito bem o motivo do presente. Provavelmente pelo interesse que sempre tive por música e, lógico, pelo precinho camarada do equipamento.
Criado na década de 1940, o Long Play (LP) foi o principal meio de armazenamento, gravação e difusão da música em todo o mundo durante quase cinquenta anos. Em 1982, com o lançamento do Compact Disc (CD) se inicia o processo de definhamento da produção e venda dos LPs. No Brasil, os CDs começam a circular comercialmente em 1987, impactando imediatamente o mercado do vinil. No final dos anos 1990, não se produziam mais LPs no país, todas as fábricas de vinis fecharam suas portas e a nova mídia passou a monopolizar o mercado fonográfico brasileiro. Quem não lembra das pilhas de vinis jogadas no lixo ou esquecidos em algum cômodo ou móvel da casa?
Nos anos 2000 o mercado do Compact Disc entra em decadência. Com o impacto provocado pelo desenvolvimento e proliferação do formato mp3, a pirataria se difundiu rapidamente. Estima-se que de cada três CDs vendidos no Brasil, apenas um era original nessa década. Soma-se a isso, o surgimento de inúmeros sites que possibilitavam o download de músicas gratuitamente. Mais recentemente outra inovação revolucionou a forma de se consumir músicas no século 21. As plataformas de streaming já são os principais meios para se acessar a produção musical de artistas das novas e velhas gerações.
É nesse cenário de metamorfoses radicais no universo da música que o velho bolachão, relegado às traças e à poeira anos atrás, retoma um lugar de destaque no mercado fonográfico mundial e nacional. Hoje estão em pleno funcionamento cerca de 65 fábricas de vinis no mundo e duas no Brasil, a Polyson no Rio de Janeiro e a Vinil Brasil em São Paulo. A empresa carioca, a maior do mercado, produziu cerca de 120 mil LPs e compactos apenas em 2019. Em alguns países, como Estados Unidos e Inglaterra, a venda de discos de vinil já ultrapassou a de CDs.
Criado na década de 1940, o Long Play (LP) foi o principal meio de armazenamento, gravação e difusão da música em todo o mundo durante quase cinquenta anos. / Foto: Divulgação
A pergunta que não quer calar. Qual motivação para a retomada do vinil?
Considero que junto com essa evolução tecnológica das mídias digitais, como o CD, o mp3 e agora os streaming, facilitando a manipulação, o acesso e até mesmo a difusão de produções culturais clássicas e contemporâneas, há, pari passu, a reprodução de características próprias do que o pensador Theodor Adorno denominou de indústria cultural, como a massificação, a homogeneização, a simplificação e agora, intensificada pela ideologia neoliberal, a efemeridade.
Quase sempre, a relação estabelecida com a produção de um determinado artista ou banda, através de plataformas digitais, é bastante aligeirada e fragmentada. A facilidade em selecionar faixas, organizar playlist, a duração das músicas cada vez mais comprimida e, sobretudo, com a dificuldade de concentração e fruição estética dos indivíduos, estimulada pela velocidade e pressões do tempo do capital, fazem com que os ouvintes vivenciem de forma bastante limitada suas experiências musicais.
Para mim o disco de vinil possibilita, justamente, uma experiência sensorial mais completa. O contato físico e visual, a partir da capa, do encarte e até do cheiro (risos) promove um vínculo afetivo entre o sujeito e o álbum. A audição de um LP, nos seus lados A e B, é um ritual de resistência à fluidez e a fugacidade dominantes, não só no campo da arte, mas na própria vida cotidiana.
A reconstrução desse “mundo do vinil”, pelo menos no Brasil, ainda é restrito a determinados nichos e grupos. Para além das questões dimensionadas anteriormente, outros limites estão relacionados aos valores elevados dos discos lançados ou relançados nesse formato, ao inflacionamento dos preços de LPs usados e a retomada ainda lenta da fabricação de equipamentos de som acessíveis a um público maior.
A riqueza e a diversidade musical brasileira poderiam ser catalisadas por essa retomada. Esse mercado, na nossa realidade, pode estimular a geração de milhares de empregos diretos e indiretos no campo da economia criativa, por exemplo. A criação de novos selos, a modernização e abertura de novas fábricas de LPs e equipamentos, a organização de feiras e festivais em torno da cultura do vinil, dentre outras ações, têm um potencial ainda pouco explorado.
Para além da nostalgia ou do modismo retrô, como algumas vozes ecoam, o retorno do vinil expressa a valorização da história da música e da produção cultural da humanidade, contra os inimigos da memória coletiva e os apologistas da ignorância. Mamãe era muito intuitiva e talvez aquele presente tenha sido um preságio ou um desejo para que o hiato que nos separou do vinil não se repita e que essa volta, enfim, seja definitiva. Oxalá.
Para comprar vinis e equipamentos em Fortaleza
Augusto dos discos – Rua São Paulo, 432 – Centro
78 rotações – Rua Torres Câmara, 71 – Aldeota
O vitroleiro – Rua Alberto Magno, 1428 – Montese
Feira Afins de Vitrola – Mercado dos Pinhões (suspensa temporariamente)
Para acompanhar alguns DJs que trabalham com vinil na capital cearense: