Ainda é de manhã e as Comunidade Quilombolas de Sangradouro, Gameleira e Croatá, em Januária (MG), fazem vigília para a garantia da sobrevivência em seu território tradicional invadido por fazendeiros. Na porteira, capangas armados e policiais estabelecem diálogo íntimo.
Este é o sertão de Minas. E eu estive lá.
Os retirantes saem para as terras altas. Foi assim que seus pais, avós, bisavós e toda ancestralidade garantiram a manutenção da cultura da vazante, observando e respeitando o subir e descer das águas que assustam, mas também trazem fartura.
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Estive nos retiros onde as famílias se instalaram por segurança. A vida dos vazanteiros é sabiamente orquestrada pelo rio e seus mistérios. Ainda tem que aguardar a “cheia de São José” em maio e só depois dela poderão plantar com tranquilidade, garantindo a fartura do ano com abóboras, melancias da praia, feijão, milho, mandioca…
O tempo de retirada seria tempo de oração, de festa, de união e de troca entre as famílias que salvam os animais da enchente.
Infelizmente, a paz vivida pelos antepassados foi maculada há algumas décadas pelo avanço do agronegócio e pela negociação de terras sagradas, que desconsidera a presença de comunidades tradicionais no território. Em retiro, as famílias agora observam temerosas a presença de homens armados que os vigiam em constante ameaça restringindo o acesso das comunidades às terras que sempre foram de seu usufruto.
Aqueles que as invadiram não aguardam a cheia de São José, não fazem oração ou trocas entre as famílias, não entendem o que o rio quer dizer e o que os peixes estão mostrando. São invasores sem vínculo, que exploram a terra e a população que nela vive. Há anos, o responsável é denunciado pelas comunidades: Walter Arantes, latifundiário, sócio das redes de supermercados BH, EPA e Mineirão.
A ausência da regularização fundiária pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) dificulta ainda mais o fluxo tradicional da comunidade de vazanteiros que, historicamente, ocupa o território. Apesar do laudo antropológico indicar os limites e provar a presença secular das famílias naquele lugar, os usurpadores insistem na narrativa de que a comunidade não existia e que a ela não pertencia a terra – uma tentativa de inviabilizar os povos tradicionais.
Realizamos, no dia 3 de março, uma audiência pública da Comissão de Direitos Humanos (CDH) da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) para tratar dos conflitos vividos por essas comunidades. Eles denunciaram as ameaças recebidas e reforçaram a necessidade de titularização urgente do território quilombola. A ausência do Incra – órgão convidado e responsável pela regularização do território – denuncia a falta de comprometimento do Estado brasileiro em garantir o direito à terra aos povos tradicionais.
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Já no dia 7 de março, visitei os retiros das comunidades de Croatá, Sangradouro e Gameleira. Absurdamente, mesmo com liminar a favor da permanência das famílias no local, o território estava sendo vigiado por homens armados que limitavam a entrada de água, pequenos animais, eletrodomésticos e visitantes na comunidade. As famílias estavam sendo cerceadas do direito de ir e vir e de usufruir do próprio território.
A sede da fazenda, dias atrás abandonada, foi povoada por falsos funcionários, equipamentos, veículos e insumos de toda ordem em uma evidente competição de ocupação e ação de má fé. Capangas armados parados na entrada da fazenda se apresentaram como policial civil e policial da reserva, mas não quiseram se identificar. Um equipamento do Estado à serviço da propriedade privada, que, de forma escancarada, ameaçava aqueles que o Estado deveria proteger. Fui ofendida de forma agressiva e desacatada como parlamentar, o que me obrigou a chamar a polícia, lavrar um boletim de ocorrência e uma representação criminal.
É meu papel denunciar o que está acontecendo no Norte de Minas, que vive ainda à mercê de ações coronelistas, agora protagonizadas por grandes empresários que atuam com aval e financiamento estatal e são acobertados também por prefeitos da região. Os grileiros exploradores do sertão precisam responder judicialmente pelos seus crimes e a terra precisa estar à disposição daqueles que sempre a usaram como bem comum.
As comunidades de forma autônoma têm a cartografia do território com indicações de gestão coletiva do espaço prevendo a ocupação de acordo com a manifestação natural do Rio São Francisco. Será tempo de muita resistência e a Comissão de Direitos Humanos estará também no sertão de Minas defendendo os direitos do povo mineiro, principalmente, daqueles que ajudaram a forjar este estado com as próprias mãos.
Andréia de Jesus é deputada estadual de Minas Gerais pelo PSOL.
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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal