Foram só dois dias. Mas eu acho que pareceram muito, muito mais. De quando eu nem tinha acordado direito e a vizinha gritou que havia uma fila de policiais na entrada da invasão, até o momento em que a gente jogou futebol juntos no espaço do abrigo. Éramos cinco, e agora somos só dois, chutando uma bola meio murcha. Antes disso, eu preciso contar que dois dias atrás, durante o despejo, por volta de onze da noite, eu e Raíssa, minha irmã, a gente estava deitado no sofá de casa, só que o sofá já estava no meio da rua, debaixo da chuva, e a mãe colocou uma lona por cima da gente. A gente, eu e Raíssa, esperava pra saber o que ia acontecer, até que finalmente a liderança conseguiu um frete pra nos trazer até o abrigo onde estamos agora. Já na primeira noite fiquei amigo do Erick, irmão do Jonathan e do Emerson, a gente ficou bastante amigo, a gente achou engraçado no começo quando viu as coisas das nossas casas todas espalhadas naquele barracão fedido. Depois percebeu que a coisa era séria. A gente viu as mães chorando porque perderam todas as madeiras da casa no dente do trator. Então nesses dois dias, eu, o Erick, a Tainá, o Emerson e o Jonathan jogamos futebol, recebemos brinquedos de doação, recebemos visita de atores pra se apresentar pra gente, quebramos um dos vidros do banheiro dos homens, tomamos banho gelado, vimos o pai dos meninos bater boca com o funcionário da prefeitura. Só que agora a gente está aqui na frente do abrigo, é um fim de tarde com sol esquisito, os patrão da mãe do Erick aceitaram abrigá-los num puxadinho atrás da casa, as coisas estão outra vez sendo encaixotadas. Dessa vez não querem deixar nada pra trás. Chegou a hora de a gente se abraçar e não se ver mais, ninguém tinha ensinado ainda essa coisa da despedida pra nós, o pai nunca tinha dito como doía, as coisas estão todas misturadas no ginásio, as pessoas também, os cachorros também, os gatos também e agora o Erick me deu um abraço meio apertado e eu disse que gostava dele, e percebi que a vida pode ser coisa que queima forte. O pai desejou boa sorte pra família deles. A mãe comentou que a gente ainda não sabia pra onde ia, mas que qualquer coisa eles mandassem um zap. Pior que as duas famílias que lá na invasão brigavam tanto e agora não brigaram mais. As coisas foram colocadas no carro velho de um tio do Erick. A comunidade bateu palmas, todo mundo junto, e ficou feliz pela família deles. Eu pedi apenas que Deus tivesse força pra segurar as lágrimas que desciam que nem tempestade do céu. Se cuidem, Erick, Jonathan, Emerson, o fim de tarde estava bonito e calmo. O carro partiu devagar e balançando. E a Tainá disse que também queria ir naquela direção bonita onde estava o sol.