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E se o Sol não voltar?

Chegou o momento de encarar a escuridão de frente e desde o lodo construir algo diferente

No Inti Raymi vivemos o dia mais curto e a noite mais longa do ano. Nessa ocasião, os povos que amam a la Madre Vida sabem que corremos um grande perigo: e se o Sol não voltar?

Na sociedade moderna esta perspectiva é considerada como algo apenas simbólico e irracional. Mas interpretar com simpleza as cosmovisões que obedecem aos ciclos naturais é um grande erro, já que têm muito a nos ensinar.

Pensar que o sol sempre vai voltar, pode nos fazer sentir seguros, porém a lógica nos tira o que os fenômenos cotidianos da natureza podem nos revelar, algo que foi aprendido com maestria pelos povos que sabem que dependem diretamente dos humores da Terra.

Há muito tempo, as pessoas esperavam com temor e expectativa isso que chamamos de solstício de inverno. Sem eletricidade, se experimentava uma escuridão quase infinita. Para estar preparados, entravam ao outono purificados, deixando cair suas próprias folhas velhas. Atravessavam os dias, que eram cada vez menores, alinhados ao processo que a própria natureza estava atravessando.

Quando um conflito aparece na nossa vida, se o experimentamos com sinceridade, podemos chegar a tocar a nossa própria sombra, de forma que ela pode até nos engolir. Viajar ao inframundo não é visto como algo negativo pelas cosmovisões originárias. É como estar grávido de si mesmo.

As culturas que se centram só na luz, tendem a ter medo ou preconceito contra a escuridão. Preferem olhar apenas para o que é leve e claro, ignorando que a claridade só pode existir junto ao seu oposto. Fogem de uma parte tão fértil de cada um e de tudo o que existe: a escuridão.

Mas na América Latina profunda não há medo do escuro. Se vive em casas perdidas no meio das árvores, das montanhas, dos bichos. Se caminha com a mesma habilidade entre as trevas e o resplendor. E, há muito tempo, quando chegava a primeira noite do inverno, tudo se entregava para ser consumido pelo breu. Em irmandade, pessoas, bichos, plantas, todos precisavam atravessar unidos a grande noite.

As casas recebiam a ordem de apagar o fogo. As brasas se extinguiam só para essa noite, que era uma travessia entre o ano velho e o novo. O resto do ano o carvão aceso era guardado nas cinzas para reacender o fogo de madrugada, para esquentar-se e cozinhar. Tudo isso era feito pelas mãos habilidosas das mulheres que ocupavam esse posto com destreza e dedicação.

Mas nessa noite, justo quando espreitava a possibilidade de que o Sol não voltasse, o fogo de cada casa era apagado, e se encarava a escuridão de frente e com dignidade. Todos juntos, em oração e oferendas comunitárias, pediam a Inti Tayta, el Padre Sol, que voltasse a iluminar a Terra.

Antes do amanhecer, em estado de lucidez e devoção, o Inka e a Ñusta acendiam el fuego nuevo, uma chama nova para o ano que começava. Esse fogo era levado e compartilhado com cada casa por luminosos mensageiros. Pequenas porções do próprio Sol ancestral chegavam para ser abrigadas no fogão de todas as cozinhas.

Imagino os responsáveis por distribuir o fogo, levando as brasas a cada casa, com apuro e alegria por trazer o maior presente ao povo: a luz glorificada. Também penso no alívio das pessoas que esperavam ansiosas para receber o carvão incandescente. Um fogo novo que duraria todo o ciclo que recém nascia: uma nova volta da Terra ao redor do Sol.

Me parece tão bonito ver que esse era e ainda é o verdadeiro ano novo dos povos originários do hemisfério Sul. Não pelo calendário, se não pela luz do Sol que volta a brilhar na escuridão total. Essa própria escuridão também reverenciada, com um ato tão simples de entregar-se a ela por uma noite inteira. Porque só quando vemos que estamos no escuro, pedimos pela volta do Sol.

Rogamos à Luz que volte a ser cor, palavra, árvore, pássaros, corpo. Imploramos como um bebê pelo peito, pela força e lucidez que o Sol dá a quem sabe o valor que ele tem.

Estamos em 2024 e é essencial, como todos os anos, celebrar o Inti Raymi, o solstício de inverno. Vivemos um momento tão obscuro, é impossível não sentir impotência ou desespero. Já tentamos escapar da escuridão sem sucesso, chegou o momento de encará-la de frente e desde o lodo construir algo diferente.

O solstício de inverno é quando todos apagamos o fogo de casa para olhar a escuridão nos olhos. Frente ao sofrimento real, próprio e dos que estão ao redor, ter a humildade de pedir, implorar pela volta da luz. Dar-se conta da própria ignorância e debilidade traz a lucidez que é a semente de toda iniciativa comunitária sincera.

Será que a humanidade conseguirá resolver esse desafio destrutivo que nós mesmos criamos? Ainda não sabemos a resposta, muito menos a solução. Mas voltar às práticas originais destas terras podem nos dar a força necessária para atravessar esta grande noite até que os raios do novo sol acordem outro dia.

* Paloma Aguilar, maestra da Escola Solar Andina.

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

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