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Cientista Social, militante do MST do Distrito Federal e Entorno.

Entre o Kwanza e o Natal: reflexões sobre Identidade

Para a maioria da população brasileira, o final do ano é um momento de diversas celebrações, encontros e reencontros.

a identidade brasileira é feita dessas sobreposições, onde o passado e o presente se encontram

As ruas, comunidades e as diversas vizinhanças ganham iluminação especial, o clima de “solidariedade” é evocado, em meio a toda alienação dos outros meses do ano. Nessa época,  muitas famílias se reúnem em torno da tradição cristã que celebra o nascimento de Jesus, ao Massacre dos Inocentes, ele nasce em meio ao povo. 

No entanto, há uma resistência frente à hegemonia cultural cristã aqui no “Evangelistão”, há um Jesus do povo, preto e periférico, não podemos nos furtar disso. Precisamos entender que há  outros sentidos de pertencimento e celebração que emergem em meio às chuvas que mudam a cara do Cerrado e são sinal de vida nova, como o Kwanzaa. Essa festa valoriza a cultura, a história e as tradições africanas e afro-diaspóricas, encontro dessas perspectivas levanta questões fundamentais sobre identidade do povo brasileiro e resistência no contexto de guerra cultural. 

O Kwanzaa, celebrado de 26 de dezembro a 1º de janeiro, nasce nos Estados Unidos da América nos anos 1960, durante o movimento negro pelos direitos civis para trazer a reflexão da africanidade nas festas do final do ano. Criado por Maulana Karenga, a festividade busca reforçar laços culturais e comunitários entre pessoas negras, com princípios como unidade (umoja), autodeterminação (kujichagulia) e cooperação econômica (ujamaa). Embora seja mais comumente associado às comunidades afro-americanas, o Kwanzaa ressoa com as experiências da diáspora africana ao redor do mundo, incluindo o Brasil, o segundo maior país negro do mundo.

Por outro lado, o natal no Brasil, profundamente enraizado na herança colonial portuguesa, é um reflexo da imposição de valores brancos, cristãos e europeus. Essa tradição, em muitos casos, silenciou ou marginalizou celebrações e espiritualidades de origem africana, que foram estigmatizadas e perseguidas ao longo de toda história até os dias atuais . Apesar disso, comunidades negras brasileiras têm resistido e reimaginado suas próprias formas de celebrar, mesclando elementos culturais e espirituais em um ato constante de reinvenção identitária, resistência. 

No final de 2024, essas reflexões se tornam ainda mais urgentes em um país que enfrenta os desafios em constante ascendência em relação ao racismo estrutural e sua reprodução na sociedade, não é novidade e segue urgente.

No campo político, avanços na discussão sobre o reconhecimento e a valorização da cultura negra, maioria da população,  convivem com retrocessos e resistências reacionárias.  Setores que buscam homogeneizar a identidade nacional em torno de narrativas eurocêntricas e brancas, as mais fortes bancadas do parlamento, os BBB’s (boi, bala e bíblia) estão nesse bastião de conservadorismo e destruição,em nome do interesses do capital, que precisa do racismo de apagamento para fortalecer sua reprodução. 

Perguntar o que se comemora no final do ano é, então, mais do que uma questão sobre festas ou preferências pessoais. É um convite à reflexão , como construímos e negociamos nossas identidades em um país marcado por tensões raciais estruturais. Celebrar o Kwanzaa ou o Natal, ou até mesmo ambos, não precisam ser excludentes; podem ser um caminho para dialogar com as múltiplas camadas que compõem a experiência negra no Brasil.

Que possamos construir um natal sem fome, como já apontaram diversas campanhas do MST na história. Que o mundo nos inspire a superar a hipocrisia do consumismo, frente a fonte que assola as pessoas. Não só de alimento, mas de humanidade. 

Assim, o final de 2024 traz consigo a oportunidade de ressignificar as celebrações de fim de ano como atos de resistência e reafirmação cultural do povo brasileiro em todas suas expressões. Ao contemplar tanto o Kwanzaa quanto o Natal, temos o desafio de reconhecer a riqueza de nossas heranças e a construir espaços onde diferentes tradições possam coexistir e se fortalecer mutuamente pelo bem da sociedade plural que preconiza a constituição. Afinal, a identidade brasileira é feita dessas sobreposições, onde o passado e o presente se encontram para moldar o futuro.

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*Rafael Bastos é pai de Iracema e Omar, cientista social e militante do MST do Distrito Federal e Entorno.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato – DF.

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