Dezenas de organizações feministas, estudantes, professores, moradores e familiares realizaram uma manifestação em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, exigindo justiça após o desaparecimento e a denúncia de feminicídio da trancista Tainara Santos. A jovem quilombola, de 27 anos, desapareceu no dia 9 de outubro de 2024 após ter se encontrado com o ex-companheiro George Anderson Santos, contra quem tinha uma medida protetiva. O protesto, realizado na última quarta-feira (9), seis meses após o desaparecimento de Tainara, buscou cobrar atuação efetiva do poder público na resolução do caso e no apoio à família da vítima.
A manifestação saiu da Câmara Municipal e percorreu as ruas até a sede da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), no centro da cidade, e reuniu entidades de diversos municípios da região, como Santo Amaro, Salvador e Amargosa. Durante o ato, representantes das organizações denunciaram a morosidade na tramitação do processo, a omissão dos poderes públicos e as violências de gênero, em particular contra as mulheres negras.

“Quando uma mulher negra tomba, todos os quilombos tombam. A dor não é de uma, é de todos. As mulheres nunca tiveram direito à vida. Sou solidária à família. O Nordeste tem alto índice de feminicídio e alguns casos não são notificados, e as mulheres ainda são culpabilizadas”, salienta a advogada Maria das Graças de Brito, da Associação dos Moradores do Quilombo de Iguape, em Cachoeira.
A presidenta do Sindicato das Empregadas Domésticas da Bahia, Milca Martins, reiterou os pedidos de punição para o criminoso. “Todo apoio e acolhimento para a família da Tainara. Exigimos detenção para o culpado.”
Tese de feminicídio
No dia do seu desaparecimento, Tainara Santos, moradora da comunidade Acutinga Motecho, no município de Cachoeira, foi vista pela última vez no porto da cidade na companhia de George Anderson Santos e de outros homens não identificados. Inicialmente, o rapaz declarou que teria deixado a jovem em um posto de gasolina, mas, em seguida, apresentou outras duas versões à polícia. A jovem tinha duas filhas, uma de dois e outra de 11 anos, sendo a mais nova também filha de George.
Principal suspeito do crime, George está preso de forma preventiva desde o dia 19 de dezembro de 2024 em Feira de Santana, a 110 km de Salvador, acusado pelo Ministério Público pelos crimes de extorsão, ameaça, descumprimento de medida protetiva, feminicídio e ocultação de cadáver. O caso tramita em segredo de justiça e já foram realizadas audiências de instrução e julgamento nos dias 26 e 27 de março. Agora, o processo aguarda decisão da juíza Diva Maria Maciel Monteiro de Castro.
Segundo Laina Crisóstomo, advogada feminista da TamoJuntas, que atua no caso como assistente de acusação junto ao Ministério Público da Bahia, a tese de feminicídio está sendo construída com argumentos consistentes.
“O foco é que Tainara foi assassinada em razão do machismo e do feminicídio, e isso está sendo reforçado a cada testemunho. A justiça será feita, não só por Tainara, mas por todas as mulheres que sofrem diariamente esse tipo de violência”, salienta a advogada.
A Lei 13.104/15, conhecida como Lei do Feminicídio, introduziu no Código Penal brasileiro uma nova modalidade de homicídio qualificado, caracterizado pelo assassinato de mulheres em contexto de violência doméstica e de gênero, sendo considerado crime inafiançável e hediondo. A pena prevista para o crime de feminicídio é de 20 a 40 anos, de acordo com a Lei 14.994, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em outubro de 2024.
Com a nova lei, a pena pode ser aumentada em até um terço em caso de agravantes. O feminicídio também é considerado um crime autônomo, sujeito ao aumento de penas em situações de lesão corporal, ameaça, descumprimento de medida protetiva, injúria, calúnia e difamação.
O Brasil de Fato tentou contato com o advogado de defesa do acusado, mas até o momento não teve retorno. O espaço segue aberto.
Descaso do poder público
Familiares de Tainara, presentes no ato, criticaram a falta de assistência do poder público e do acompanhamento psicológico para as filhas da vítima. Itamara Santos, irmã da jovem, demonstrou preocupação com a mãe e as sobrinhas.
“A filha mais velha começou a receber apoio psicológico na escola em que estuda, mas com o recesso escolar, esse apoio foi interrompido, o que não deveria ter acontecido. Precisamos de apoio, mas estamos sendo ignorados”, denuncia.
Em carta aberta divulgada na última quinta-feira (10) por meio das redes sociais, a Prefeitura Municipal de Cachoeira informou que “desde os primeiros dias, diversas ações de acolhimento e orientação foram realizadas com a família” e cita a atuação de órgãos como o Conselho Tutelar, o Centro de Referência de Assistência Social (Cras), o Centro de Referência de Atendimento à Mulher (Cram) e a Secretaria de Educação. Segundo o documento, os registros e relatórios do atendimento prestado estão disponíveis para consulta, mediante solicitação, junto aos órgãos competentes.
Feminicídio na Bahia
Outro caso recente de feminicídio que também chocou a população de Cachoeira ocorreu em 27 de novembro de 2019. Elitânia de Souza da Hora, de 25 anos, estudante de Serviço Social da UFRB, foi assassinada a tiros pelo ex-namorado, Alexandre Góes Silva, que não aceitava o fim do relacionamento. O crime ocorreu quando a jovem quilombola, que já tinha obtido medida protetiva devido a ameaças recebidas, voltava para casa ao sair da aula. Após quase cinco anos de espera e cinco adiamentos, o julgamento do crime por júri popular, realizado em 31 de julho de 2024, condenou o assassino a 18 anos de detenção.
Segundo a Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP), de 2017 a 2023, o estado teve 672 vítimas de feminicídio, o que significa uma morte a cada três dias. A maioria das vítimas tinha entre 30 e 49 anos e era negra. Os companheiros ou ex-companheiros foram responsáveis por 79,5% da autoria dos casos, e 77,9% das ocorrências ocorreram em domicílio.

Já de acordo com o boletim “Elas Vivem: um caminho de luta”, produzido pela Rede de Observatório e Segurança, iniciativa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania(CESeC), em 2024 foram notificados 257 eventos de violência contra as mulheres na Bahia, sendo 46 feminicídios. Embora tenha havido uma redução de 30,2% nos casos de violência comparado com 2023, que teve 368 casos, o dado ainda é alarmante, considerando as subnotificações. Em 73,9% dos casos, as vítimas não tiveram raça ou cor identificada, mas entre as mulheres com essa informação, 19,6% eram negras.
“Apesar da existência de leis como a Maria da Penha, a realidade que muitas mulheres enfrentam na Bahia, especialmente as negras, é uma justiça que falha em proteger e responsabilizar os agressores. A violência de gênero precisa ser vista como uma violação dos direitos humanos e um reflexo de um sistema que negligencia as desigualdades existentes”, destaca Ana Paula Rosário, do Observatório da Segurança Bahia, em artigo do boletim.