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Tarifaço nos transportes do Rio de Janeiro é um claro projeto de exclusão

Sendo o transporte público um direito essencial, a revisão do modelo tarifário deveria ser uma prioridade

Por Juciano Martins Rodrigues*

Em uma metrópole marcada pela desigualdade e pela pobreza como o Rio de Janeiro, é impossível não pensar que os preços praticados nas passagens de trem e metrô são parte de um deliberado projeto de exclusão. O mesmo que historicamente produziu a segregação residencial que aparta ricos e pobres, brancos e negros, e mantém a separação entre os locais de moradia dos trabalhadores e as áreas bem servidas de infraestrutura – onde se encontra maior parte dos empregos e demais oportunidades urbanas.

Desde o início de 2025, autoridades estaduais e municipais têm promovido um verdadeiro tarifaço nos transportes na cidade do Rio de Janeiro e em sua região metropolitana, com impacto direto sobre os setores mais vulneráveis da população. No serviço de trens prestado pela empresa SuperVia, após mais um reajuste autorizado pela Agetransp (órgão responsável pela regulação dos serviços públicos do Estado do Rio de Janeiro), a tarifa passou para R$ 7,60. No metrô, serviço privatizado e controlado por um fundo financeiro internacional, a passagem é de R$ 7,50. Como se já não bastasse figurar como a tarifa mais cara do país, um aumento já anunciado vai levar o valor da tarifa para R$ 7,90.

Ainda no caso do metrô, o percentual de reajuste foi alvo de questionamento do Tribunal de Contas do Estado (TCE). Além disso, as tarifas de ônibus, tanto dos municipais quanto dos intermunicipais metropolitanos, não ficaram de fora da injustificável onda de aumento. No município do Rio, além dos mais de 2,8 bilhões pagos em subsídios pela Prefeitura, desde junho de 2022, o caixa bilionário das empresas vai ser reforçado também pela diferença no valor da passagem dos ônibus, que passou de R$ 4,30 para R$ 4,70. Em todos os casos, o percentual de reajuste é maior que os índices de inflação mais importantes para avaliar o poder de compra da população. 

Ao mesmo tempo, dados mais recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do IBGE (PNADc) mostram que, em comparação com outras regiões, a Região Metropolitana do Rio de Janeiro patina na recuperação de suas condições sociais no pós-pandemia. O rendimento médio, sem grandes sinais de aumento desde o final de 2023, é, atualmente, o menor entre as quatro regiões metropolitanas do Sudeste.

Fonte: PNAD Contínua – IBGE, dados trimestrais de 2012 a 2024. Elaboração própria. Nota: Calculado a partir da renda domiciliar per capita habitual bruta de todos os trabalhos (valores constantes, 4º trimestre 2024 / IPCA).

Em um cenário como esse, além de proibitivas, excludentes e segregadoras, as tarifas praticadas na região metropolitana se tornam uma preocupação ainda maior para a população, na medida que onera cada vez mais o orçamento das famílias. No último trimestre de 2024, a média da renda domiciliar per capita registrada para a região foi de R$ 1923,83. Sendo que metade da população vive em domicílios com renda per capita inferior a R$ 1.000. 

Como o metrô a R$ 7,90, a parte da renda média comprometida com 44 passagens chega a 18%. Esse peso é ainda maior para a população preta e parda, cujo rendimento médio, no mesmo período, foi de R$ 1310,39 e R$ 1381,13, respectivamente. Nesses dois casos, o valor despendido mensalmente em passagens do metrô pode comprometer mais de ¼ da renda do trabalho. 

Fonte: PNAD Contínua – IBGE, dados do quarto trimestre de 2024. Elaboração própria. Nota: Calculado a partir da renda domiciliar per capita habitual bruta de todos os trabalhos (valores constantes, 4º trimestre 2024 / IPCA).

O contraste significativo no que diz respeito ao impacto da tarifa na vida financeira de pessoas brancas, pretas e pardas é mais uma expressão da desigualdade nos transportes e na acessibilidade urbana da população metropolitana. Isso é complementado negativamente pela falta de planejamento e investimento na ampliação da malha ferroviária, um problema crônico na segunda maior metrópole do país. Com um processo de expansão muito aquém das necessidades da população, o metrô cobre uma parte muito restrita do território da cidade do Rio de Janeiro. Um número resume seu baixo impacto sobre a acessibilidade: entre os mais de 2,9 milhões de domicílios, moradores de somente de 12,4% deles conseguem acessar alguma das 41 estações do metrô em até 15 minutos a pé. Ou seja, considerando a inexistência de integração tarifária com os ônibus, esse modo de transporte é inacessível para quase 90% da população da cidade.

Fonte: IBGE e Prefeitura do Rio de Janeiro. Elaboração própria. Nota: Medida de acessibilidade calculada com base em Pereira, Rafael H. M. & Herszenhut, Daniel. (2023) Introdução à acessibilidade urbana: um guia prático em R. Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.

Assim, o valor cada vez mais absurdo das tarifas, a situação social, a falta de planejamento e de visão de futuro se combinam de tal forma que o transporte público parece uma opção cada vez menos viável em termos de deslocamento. Essa conjunção de fatores negativos se manifesta na visível perda de público ao longo dos anos. Nenhum dos principais modos de transporte hoje consegue sequer chegar próximo dos níveis de movimento registrados antes de 2020. Ou seja, uma crise persistente que já estava sinalizada mesmo antes da pandemia, decretada em março daquele ano.

Fonte: Prefeitura do Rio de Janeiro. Elaboração própria.

Os aumentos indiscriminados através de processos decisórios nada transparentes é um exemplo de como as autoridades se desviam explicitamente do interesse público. Ao mesmo tempo, que as soluções anunciadas se distanciam cada vez mais dos problemas estruturais do transporte no Estado, na região metropolitana e na cidade do Rio de Janeiro. Não surpreende que sejam mesmas autoridades que se omitem e não agem para coibir a exploração do transporte por grupos armados que controlam o território. Enquanto isso, prefeituras, responsáveis pela regulamentação do transporte público no nível municipal, se esquivam também quando se trata de enfrentar os problemas gerados pelos transportes por aplicativos desenvolvidos por grandes empresas de tecnologia. Exemplo maior é a presença do serviço de mototáxi, que, lastreada no poder político e econômico dessas bigtechs, se espalhou por toda a metrópole, acolhendo os usuários do transporte público e precarizando ainda mais o sistema de mobilidade.

Ao mesmo tempo, os interesses dos agentes internacionais que hoje controlam o sistema ferroviário vão no sentido totalmente oposto de políticas transportes que deveriam se guiar, em primeiro lugar, pela distribuição equitativa de seus benefícios sociais. Pouco se fala, mas as expectativas de retorno financeiro desses fundos, como o que controla o metrô – cuja expressão maior é a tarifa absurda de R$ 7,90 – são totalmente incompatíveis com as necessidades  e as condições sociais da população. Mais do que isso, são inconciliáveis com os princípios da Constituição Federal que, desde 2016, coloca o transporte como um direito social, assim como educação e saúde. 

Nesse contexto, além do impacto direto no orçamento das famílias e na capacidade de deslocamento da população, a perversidade do tarifaço de 2025 evidencia também um perigoso descolamento entre a visão dos agentes envolvidos na política e no setor de transportes e a realidade da metrópole de 12 milhões de pessoas, onde os preços das passagens contrastam cada vez mais com um quadro social deteriorado e sem perspectivas de melhora.

Romper com a lógica que sustenta esse cenário é o primeiro passo para entender que a exclusão provocada pelos sucessivos aumentos tarifários não é apenas um problema econômico, mas uma questão social de primeira ordem. Sendo o transporte público um direito essencial, a revisão do modelo tarifário deveria ser uma prioridade política no contexto em que o peso da passagem define quem pode ou não circular na cidade. Isso inclui uma discussão aberta sobre a tarifa zero em todos os transportes, como uma forma de enfrentar um modelo de desenvolvimento urbano que exclui trabalhadoras, trabalhadores e suas famílias das chances e das oportunidades que a cidade oferece.

*Juciano Martins Rodrigues é professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Observatório das Metrópoles (CNPQ/FAPERJ).

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