Há 29 anos, no dia 17 de abril de 1996, acontecia um dos casos mais emblemáticos de violência contra camponeses no Brasil, quando uma mega operação com 155 policiais banhou de sangue a BR-155, no ponto chamado Curva do S, em Eldorado do Carajás, assassinando 19 trabalhadores rurais na hora e ferindo outras duas vítimas que morreriam dias depois.
As lembranças cruéis do massacre ainda estão vivas na memória de sobreviventes e familiares das vítimas, como Maria Zelzuíta, que aos 60 anos ainda se dedica à luta pela reforma agrária junto ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no estado.
“Nós ficamos aqui no meio da pista em fogo cruzado, balas dos dois lados, três mil pessoas no meio dessa pista. Grande, pequeno, jovem, velho, mulheres, corriam para todo lado. Aqui não era plano, era uma barreira, e além de ser uma barreira tinha chovido no dia 16, e antes descia água, depois descia sangue, essa pista ficou coberta de sangue”, relembra Maria, em entrevista ao Brasil de Fato.
Maria participa ativamente das atividades do movimento e hoje é assentada, com a garantia de terra para plantar e viver com a família. Mas lamenta que esse era o sonho coletivo também daqueles que foram assassinados no massacre.
“Eram pais de família que tinham sonhos, igual eu tive meu sonho realizado, mas que morreram, que eles mataram aqui na pista. Não tiveram um pedacinho de terra para criar seus filhos, seus filhos ficaram órfãos de pai, ficaram só com a mãe”, comenta emocionada.

Inspiração para documentários, peças teatrais e muitas pesquisas, o Massacre de Eldorado do Carajás ainda é cercado de dúvidas, pois diante da extrema violência daquele dia 17 de abril, Maria Zelzuíta acredita que o episódio possa ter deixado ainda mais vítimas do que o registrado.
“Eles falam que foi só homem, mas eu tenho minhas dúvidas, porque foram balas para todo lado e apareceram só 19 mortos e todos homens. Se eu tivesse morrido, alguém teria aparecido com meu corpo para meu filho de 3 anos enterrar? Não… Eu acredito que não. Acredito que devem ter morrido companheiras nossas, porque até uns cinco anos atrás vinha gente procurar pelas pessoas e era por mulher, e essa pessoa não existia mais no acampamento, não foi para onde a família está e essa pergunta não quer calar”, reflete Maria.
Naquele período, o massacre chamou atenção mundial e, para que não fosse esquecido e se tornasse um marco na luta pela terra, o dia 17 de abril passou a ser o Dia Internacional da Luta Camponesa, e o mês, um símbolo de lutas populares no país, conhecido como Abril Vermelho.

Acampamento Pedagógico Oziel Alves mantém a memória viva
Desde 2006, todos anos, o MST ergue na Curva do S, local do massacre, o Acampamento Pedagógico Oziel Alves, nome da vítima mais jovem e mais torturada durante o massacre, que tinha 17 anos.
O acampamento é voltado para a juventude do campo, especialmente dos estados da Amazônia, e conta com a presença de sobreviventes que compartilham suas memórias, mas também com a construção de iniciativas em defesa da reforma agrária.
“O acampamento pedagógico representa para nós uma ressignificação do que foi esse espaço, mas acho que acima de tudo, repõe a memória dos nossos mártires e representa os sonhos da juventude. A gente sempre diz que o objetivo, também, do acampamento pedagógico é transformar o S da curva, em S de sonhos”, comenta a assentada maranhense Nallyja Fernanda, que compõe o Coletivo de Juventude do movimento.
Impunidade e luta
Os 155 policiais militares que atuaram nos atos de violência brutal foram absolvidos e somente os comandantes da operação, coronel Mário Colares Pantoja e o major José Maria, foram condenados 16 anos após o massacre. Após os 16 anos em liberdade, eles foram condenados a 280 e 158 anos de prisão em regime fechado respectivamente, No entanto, em menos de cinco anos, ambos garantiram a liberação para prisão domiciliar.
Para Maria Raimunda, que compõe a direção do Movimento Sem Terra, a impunidade nos casos de violências contra trabalhadores rurais continua a mesma nos dias de hoje.
“O Massacre de Eldorado, assim como os outros massacres e assassinatos de trabalhadores no Brasil, e principalmente aqui na nossa região, sudeste do Pará, sul do Pará, continua impune. A gente acredita que essa articulação foi permanente também nos processos dos julgamentos, que todos foram uma farsa e a impunidade impera em todos os casos de violência no campo e o Massacre de Eldorado dos Carajás é mais um desses casos”, explica Maria Raimunda.

Apesar dos índices de violência e em memória dos mártires, o MST aponta que a luta pela terra no estado se intensifica cada vez mais na região, que hoje abriga o maior acampamento do Brasil, chamado Terra e Liberdade, com mais de 5 mil famílias em defesa da reforma agrária.
Segundo Maria Raimunda, a luta pela terra e a dignidade no campo é a resposta do movimento à violência e à impunidade que seguem em todo o país.
“O MST entendeu que essa articulação do Judiciário brasileiro com fazendeiros, com o Estado e com empresas iria barrar qualquer processo de justiça nesse caso. E justiça para nós é ocupar terra, é a justiça social da conquista. E por isso a gente se colocou em luta, entendendo que o Judiciário tinha as suas farsas e nós tínhamos que garantir justiça social a partir da organização e da luta pela terra.”