A proposta de armar a Guarda Municipal do Rio de Janeiro não é nova. Desde 2018, tramita na Câmara dos Vereadores o Projeto de Emenda à Lei Orgânica Municipal (PELOM) nº 23/2018, que autoriza o uso de armas letais pela Guarda Municipal (GM-Rio).
Entretanto, neste ano de 2025, com a reeleição no primeiro turno do Prefeito Eduardo Paes (PSD), a tramitação do Projeto voltou com força na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro. Os projetos da Prefeitura têm hegemonia sobre os vereadores e vereadoras do Município.
O PELOM nº 23/2018 foi votado em dois turnos: inicialmente, foi aprovado no 1° turno no dia 1° de abril deste ano – mesmo dia em que, inclusive, se marca a memória do golpe que instalou uma violenta ditadura empresarial-militar no Brasil, período de intensa expansão do uso arbitrário do poder de polícia e de grande repressão e violência estatal. Nesta primeira votação o projeto foi aprovado por 43 vereadores, apenas 7 foram contrários ao armamento da GM-Rio, e houve 1 falta no plenário.
No dia 15 de abril, o referido Projeto foi aprovado no 2° turno. Desta vez, 41 vereadores votaram a favor do armamento da GM-Rio, apenas 7 se opuseram e 3 não votaram. Apenas vereadores e vereadoras do Partido Socialismo e Liberdade (Psol) e parte da bancada do Partido dos Trabalhadores (PT) foram contra o Projeto, em ambas as votações.
O Prefeito Eduardo Paes (PSD) já informou que irá encaminhar Projeto de Lei Complementar regulamentando a emenda aprovada na Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro até o meio do ano.
Os defensores do projeto argumentam que, além de proteger bens e instalações públicas, a Guarda deve atuar com armas nas ruas da cidade do Rio de Janeiro para garantir a “segurança” da população.
Entretanto, o Movimento Unido dos Camelôs (MUCA), o Fórum Popular de Segurança Pública do Rio de Janeiro e mais de 100 movimentos populares, sindicatos e entidades do Rio de Janeiro, vêm denunciando que onde há mais armas, há mais violência. O Rio de Janeiro é uma das cidades com maior presença de armamento e veículos bélicos do país e a proposta continua sendo colocar mais armas em circulação.
A Procuradoria dos Direitos do Cidadão (PRDC) do Ministério Público Federal (MPF) e o Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (NUDEDH) da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPGE/RJ) expediram nota técnica questionando o Projeto de armamento da Guarda Municipal.
Segundo a referida PRDC do Ministério Público Federal, o direito fundamental à segurança pública deve ser garantido pelo Município, o que não se limita à guarda municipal ou a atividades que se assemelhem à função policial. Outras estratégias de atuação devem ser formuladas, planejadas e executadas. Ainda mais a nível municipal, as políticas de segurança pública devem consistir em ações localizadas, com estratégias de prevenção integradas, enfrentando problemas concretos como a evasão escolar de jovens, escolaridades, condições de trabalho, etc.
Essas medidas coadunam inclusive com a Lei nº 13.675/2018, que indica a necessidade de elaboração de plano municipal de segurança pública (art. 22, § 5º). Elaborar políticas públicas de segurança que não se resumam à guarda municipal e que sejam mais efetivas é fundamental principalmente no Estado do Rio de Janeiro, o qual, de acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, registrou o segundo maior número de mortes em intervenções policiais do país em 2023, com marcador racial, eis que atinge majoritariamente a população negra. Este cenário de alta letalidade policial no Rio de Janeiro foi objeto, inclusive, de discussão no âmbito do Supremo Tribunal Federal na Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 636, que ficou conhecida como “ADPF das Favelas”.
De fato, é preciso lembrar de que há tratados internacionais no campo dos direitos humanos em que se busca controlar o uso da força e armas de fogo das autoridades, como os “Princípios Básicos sobre a Utilização da Força e de Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei” (PBUFAF), adotado pelo 8° Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes, de 1990, e o “Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei”, adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas de 17 de dezembro de 1979.
Tais normativas reconhecem o necessário controle sobre o uso sistemático e abusivo por parte das forças de segurança, que no Rio de Janeiro fica evidenciado com o reconhecimento, pelo voto do Ministro Relator Edson Fachin na ADPF 635 (ADPF das Favelas) no STF, de que a segurança pública encontra-se em um estado de coisas inconstitucionais. Armar a guarda municipal, cuja característica é a repressão a trabalhadores camelôs e a população em situação de rua com uso desproporcional da força, significa contribuir para esse estado de inconstitucionalidade e ampliar a alta letalidade que marca o campo da segurança.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 144, define expressamente que as Guardas Municipais devem proteger bens, serviços e instalações, enquanto a segurança das pessoas cabe às polícias (Militar, Civil, Federal) e aos bombeiros.
No entanto, em 2019, o Supremo Tribunal Federal ampliou essa interpretação, permitindo que Guardas Municipais realizassem policiamento ostensivo e comunitário, desde que não invadissem as atribuições de outros órgãos. Muitos questionamentos surgem em relação a essa decisão não condizente com o próprio texto constitucional:
- O policiamento ostensivo só é possível com o uso de armas letais?
- Como garantir que o armamento de fogo não impacte em maior letalidade policial contra a população negra e periférica?
- Um órgão pode atuar armado, enquanto força de segurança, sem controle externo?
- Qual será o impacto dessa medida para os cofres públicos?
- Considerando que hoje a Guarda atua em condições precárias, com um efetivo envelhecido, sem previsão de chamamento de concursados, seria o armamento a prioridade para a segurança pública?
- Quais são as reais funções desse órgão em relação à segurança pública? Como não haverá invasão de competência em relação às outras forças policiais?
O debate é propositalmente confuso para desviar do real objetivo: militarizar ainda mais a cidade do Rio de Janeiro, colocando mais armas nas ruas sob o discurso de “proteção”. Assim, é um projeto falacioso, eis que produzirá mais violência, a pretexto de combatê-la.
Não há embasamento técnico que suporte a falsa ideia de que armar mais levará a redução da criminalidade e que necessariamente garantirá de forma automática mais segurança para a população. Pelo contrário, o armamento poderá provocar maior letalidade nos procedimentos, principalmente em conflitos advindos das abordagens policiais, de modo que atingirá profundamente aos trabalhadores ambulantes e pessoas periféricas.
Além disso, a Guarda Municipal do Rio de Janeiro já faz uso discriminatório de armamento menos letal (os IMPOs), de forma truculenta, reprimindo trabalhadores informais, intimidando a população em situação de rua e violando direitos de manifestantes. Na maioria das vezes, as vítimas dessas violências não conseguem registrar suas denúncias, gerando subnotificação. Quando o fazem, não logram obter a responsabilização desses agentes. Para agravar, é recorrente que as vítimas de violência das guardas, em especial os trabalhadores ambulantes, sejam imputadas de delitos que não cometeram para justificar o uso diferenciado da força, em função da suposta boa-fé dos agentes públicos. Essas abordagens abusivas e essa blindagem à conduta de guardas que atuam fora da lei, refletem uma política de repressão e criminalização da pobreza promovida pela Guarda Municipal. Trata-se de uma agência do sistema penal subterrâneo, uma engrenagem de um maquinário mais amplo que abarca um sistema de justiça penal viciado pelo racismo institucional.
É ainda importante mencionar que o armamento da Guarda Municipal não garante qualquer melhoria relativa às condições de trabalho da categoria. Reivindicações como recomposição salarial, aumento do número de efetivos (inclusive o chamamento dos aprovados no concurso feito em 2012), melhores estruturas dos postos de trabalho, etc, não foram debatidas pelos vereadores que votaram a favor do armamento.
Na prática, armar a guarda municipal do Rio de Janeiro apenas irá aumentar a violência contra a população pobre e negra, por isso, os movimentos populares seguem gritando “GUARDA ARMADA NÃO!”
*Contribuíram com o artigo Anna Cecilia Bonan, Cecilia Café Baldani, Fernanda Maria da Costa Vieira e Mariana Trotta Dallalana Quintans.