O desenrolar do interregno histórico iniciado com a crise de 2008, que é a crise do modelo neoliberal – e no Brasil, da Nova República -, chegou a um momento em que pelo menos um novo protagonista já se constituiu. Como alternativa – ainda que falsa – à crise, surge o fascismo renovado.
Alguns dias representam inflexões tão importantes no cenário mundial que mais se parecem meses. Meses que se parecem anos. Em pouquíssimo tempo, por exemplo, tivemos os Estados Unidos rompendo sua aliança estratégica com ninguém menos que a Europa, ao passo que estabelece uma aproximação estranha com a Rússia.
Ambos os movimentos para romper compromissos econômicos para manutenção da geopolítica estabelecida com o fim da União Soviética e com o estabelecimento do neoliberalismo, no início dos anos 1990. Porque o fascismo renovado não tem compromisso com a velha ordem, baseada nas alianças globais do imperialismo ocidental. Não rompe com as classes dominantes, mas rompe, sim, com o modelo político da democracia liberal que se sustenta a pernas bambas.
O tempo tem passado acelerado para todo mundo, sob uma perspectiva histórica.
Ainda assim, para pessoas trans, ele passa ainda mais rápido, porque são um dos alvos prioritários na formação do “inimigo nacional”, ou “inimigo interno”, o qual o fascismo, clássico ou renovado, precisa para se alçar ou se estabelecer no poder.
Plantar na classe trabalhadora o sentimento de pânico constante, de ódio não só a nações distantes, mas também a outros trabalhadores que estão ao seu lado, é um dos elementos fundamentais do fascismo. Não é só o velho preconceito, é o sentimento de que é preciso matar para viver.
Nesse aspecto é que imigrantes e pessoas trans – com o pêndulo pesando mais para um ou para outro, a depender do país e da situação – se tornam essenciais para a consolidação do fascismo em diversos países. É a estratégia utilizada por Trump, Bolsonaro, Erdogan, Orbán, Meloni, Le Pen, Putin e, no caso de Netanyahu, não contra imigrantes, mas contra os donos da própria terra, que o sionismo tenta pintar como um povo invasor.
Para nós, pessoas trans, o tempo passa como nos anos 1920. Naquela década, na Alemanha, pessoas que hoje incluiríamos na sigla LGBT+ tinham espaços próprios, como bares e cafés, publicações de revistas temáticas e, em alguns casos, pessoas trans tinham até mesmo autorização para transitar nas ruas vestindo-se de acordo com sua identidade de gênero. Foi nessa época, ainda, que o Instituto Magnus Hirschfeld teve papel crucial em se opor à patologização e criminalização das dissidências de gênero e sexualidade e que foi feita a primeira cirurgia de redesignação genital de que se tem registro. E mesmo com tudo isso, os anos 1930 iniciaram o período mais terrível para LGBT+ na Idade Contemporânea. Nós éramos os triângulo rosas e triângulos negro dos campos de concentração.
Não é possível não fazer um paralelo com o que vivemos hoje. Se nos anos 2010 tivemos diversas vitórias, se conquistas permanecem ocorrendo aqui e ali (como as cotas trans em universidades públicas), também vivenciamos os ataques de uma extrema direita que usa de tais conquistas para espalhar pânico moral entre os que já nos desprezavam. Somos o grande perigo às crianças, às mulheres cisgênero, à família tradicional (que só existe nas propagandas de margarina, mas permanece até no ideário de quem nunca teve uma).
O Governo Trump é a grande prova de que, alçado ao poder, o fascismo apaga com uma canetada as frágeis conquistas do movimento trans na última década (nenhuma delas constituídas por leis).
Ele apaga dos sites, dos livros e de qualquer material a referência a pessoas trans. Ele troca compulsoriamente o marcador de gênero em documentos já retificados por pessoas trans, como fez com a atriz Hunter Schafer, que ao tirar a segunda via do passaporte, a recebeu com o gênero masculino.
Se o relógio da História está clicando mais rápido, para nós isso é muito mais perceptível. Mas se engana quem pensa que o futuro pode ser sombrio somente para os alvos iniciais do fascismo. Como escreveu Eduardo Alves da Costa, no famoso trecho de seu poema “No caminho, Com Maiakovski”:
“Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho e nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.”
Eles não vão parar nas pessoas trans e nos imigrantes. Se o tempo passa mais rápido para os primeiros alvos, ainda assim ele passa para todos.
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*Lucci Laporta é assistente social, militante transfeminista e dirigente do coletivo Juntas e do Psol-DF.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato – DF.
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