Um momento decisivo se aproxima para os italianos e descendentes que vivem fora da Itália. A poucos meses de um referendo convocado para os dias 8 e 9 de junho de 2025, cresce a mobilização em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil, em torno de mudanças profundas na legislação italiana que impactam diretamente a vida dos cidadãos no exterior. Em Porto Alegre (RS), a comunidade ítalo-gaúcha se reuniu para discutir os riscos à cidadania e aos direitos trabalhistas impostos por medidas recentes do governo italiano.
A iniciativa da consulta popular partiu de organizações sindicais e sociais italianas, que vêm buscando frear um processo contínuo de desmontes promovido pelo atual governo, em especial no que diz respeito ao direito ao trabalho digno e à manutenção da cidadania por descendência, o chamado ius sanguinis. Com medidas cada vez mais restritivas, o governo estabeleceu novos critérios que limitam o reconhecimento da cidadania apenas a filhos e netos diretos de italianos nascidos no exterior, excluindo gerações posteriores.

Além disso, o plebiscito busca reverter legislações que fragilizam vínculos empregatícios, ampliam a precarização do trabalho e reduzem garantias legais historicamente conquistadas. O Tribunal Constitucional italiano validou as questões propostas após uma expressiva coleta de assinaturas: mais de 4 milhões para os temas trabalhistas e mais de 600 mil no campo da cidadania.

O referendo ocorrerá por correspondência, com cédulas sendo enviadas para italianos e seus descendentes registrados em consulados fora da Itália. No Brasil, onde o Rio Grande do Sul abriga uma das maiores comunidades de origem italiana, a expectativa é de ampla participação.
O encontro realizado na sede da Central Única dos Trabalhadores (CUT/RS) reforçou os laços entre os movimentos sindicais do Brasil e da Itália. A presença de representantes da Confederação Geral Italiana do Trabalho (Cgil) e do Instituto Nacional de Assistência (Inca), além de lideranças locais, demonstrou a importância estratégica da solidariedade internacional na defesa de direitos sociais.

Abaixo, entrevista exclusiva com Filippo Ciavaglia, dirigente da Confederazione Generale Italiana del Lavoro (Cgil) e articulador do referendo, sobre os impactos políticos da consulta e os desafios enfrentados pelos italianos no exterior.
Brasil de Fato RS: Você pode nos explicar o que muda na questão da solicitação de cidadania?
Filippo Ciavaglia: Sim. Na Itália, infelizmente, o governo decidiu intervir com um decreto para limitar o acesso a um direito – neste caso, o direito à cidadania – para todos aqueles que vivem no exterior, seja temporária ou permanentemente. O decreto foi emitido pelo Ministério das Relações Exteriores, liderado pelo ministro Antonio Tajani, e define uma data específica: 28 de março. Quem entrou com o pedido de cidadania antes dessa data ainda mantém o direito. No entanto, quem enviou o pedido após a meia-noite do dia 28 de março não poderá mais solicitar a cidadania italiana da mesma forma. Ainda poderá fazê-lo, mas com novos e mais restritivos requisitos.
E o que isso significa na prática?
Isso representa um retrocesso. Até então, as gerações que tinham vínculos com a Itália – filhos, netos de italianos – podiam solicitar a cidadania com base nesses laços. Agora, o governo limitou esse direito a apenas duas gerações: pai e avô. Além disso, para quem quiser exercer o direito à cidadania após essa mudança, será necessário residir por dois anos na Itália, pagar impostos e, pasmem, o voto passa a ser obrigatório para que a cidadania seja reconhecida.
Mas o voto não é obrigatório na Itália, certo?
Exatamente. O voto não é obrigatório na Itália. E é justamente por isso que nos opomos a esse decreto. Primeiro, porque uma mudança tão importante não pode ser feita por decreto. Deve ser discutida no Parlamento. Segundo, porque isso limita um direito fundamental, restringindo a cidadania e a liberdade das pessoas. Por isso, consideramos esse decreto inconstitucional. Já há um movimento na Itália que está se organizando para contestá-lo judicialmente.
Qual o impacto social?
É um enorme contrassenso. A população italiana está diminuindo, tanto por causa da queda na taxa de natalidade quanto pelo aumento da emigração. E ao invés de incentivar o retorno ou a integração daqueles que têm laços reais com o país, o governo fecha as portas. Muitos descendentes de italianos no exterior querem voltar à Itália, querem contribuir com a economia, com a sociedade. Esse decreto limita tudo isso.
A maioria da população é contra, mas há uma minoria que acredita na narrativa de que os italianos no exterior querem a cidadania apenas por interesse pessoal. Isso é propaganda. Há muitos escândalos sendo usados como exemplos, mas ignoram as milhares de pessoas honestas que buscam a cidadania porque têm uma relação legítima com a Itália.
E o referendo convocado? Ele tem relação com essa situação?
Sim. Cheguei ao Brasil justamente para divulgar esse referendo. Estamos em campanha com associações, sindicatos, partidos na América do Sul, América do Norte, Europa Central e Ásia. Queremos mais liberdade e mais democracia. O governo italiano atual não quer modificar de forma democrática algumas regras que envolvem o trabalho e a cidadania. Por isso, convocamos o referendo. São quatro perguntas ligadas ao mundo do trabalho, para combater a precarização e garantir estabilidade e dignidade no emprego. E há uma questão específica sobre cidadania: acreditamos que todas as pessoas nascidas na Itália, após cinco anos de residência, devem ter direito automático à cidadania italiana.
E os italianos no Brasil poderão participar?
Sim, claro. Cerca de meio milhão de italianos estão registrados no AIRE (registro de italianos residentes no exterior) no Brasil. Eles poderão votar por correspondência. Para isso, precisam ter sua residência formalizada no consulado italiano. Entre os dias 15 e 18 de maio, os envelopes com as cédulas de votação e instruções serão enviados para as casas dos eleitores registrados no AIRE. Basta preencher e devolver pelos Correios – a postagem já está paga. Já os italianos residentes na Itália votarão nos dias 8 e 9 de junho.
Você mencionou também a política internacional, especialmente a postura do governo dos Estados Unidos…
Sim. A política de Donald Trump nos preocupa. Ele atacou a Europa, da qual a Itália faz parte. Mesmo quando diz que a Itália está isenta de certas tarifas, sabemos que seremos impactados. A política de Trump é fascista e elitista: restringe o mercado livre, exclui as camadas populares, ataca a escola pública, a saúde, os direitos das pessoas. Mesmo tendo sido eleito democraticamente, ele está perdendo apoio nas pesquisas. Essa política não fará bem nem aos EUA, nem à Europa, nem ao mundo global.
E o Brasil?
Estamos atentos. O Brasil, por exemplo, relançou o acordo com o Mercosul e com a União Europeia. Apesar de termos críticas, esse tipo de iniciativa pode apontar para um caminho de cooperação econômica sem tarifas, como no caso do comércio de livros, por exemplo. Precisamos de novos esquemas e alianças que vão na contramão do isolacionismo de Trump. O mundo está se reorganizando e a Itália precisa se posicionar de forma democrática, solidária e aberta.
