Nesta quinta-feira (17), completam-se 29 anos do Massacre de Eldorado do Carajás, quando 21 camponeses foram mortos pela Polícia Militar do Pará durante uma marcha do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O crime aconteceu na chamada Curva do S, em Eldorado do Carajás, e ficou conhecido mundialmente pela brutalidade com que foi executado. Dos 155 policiais envolvidos na ação, apenas dois foram condenados – e as penas só começaram a ser cumpridas uma década depois.
Para marcar a data, o Conexão BdF, da Rádio Brasil de Fato, conversou com Batista Nascimento, dirigente do MST no Pará, que viveu o massacre aos 15 anos. Na entrevista, ele denunciou que a chacina foi resultado de um projeto arquitetado por latifundiários com apoio do Estado e que perpetua uma cultura de impunidade no Brasil.
“Eu diria que, quando os policiais partiram para a Curva do S com o propósito de realizar a chacina, já sabiam da impunidade, porque o Estado brasileiro é muito perverso nesse sentido. Desde Palmares, todos os movimentos, sobretudo do campesinato, enfrentaram forte repressão do Estado ou de grileiros, protegidos. Eldorado do Carajás deu continuidade a esse projeto. Depois dele, houve Pau D’Arco, também no sul do Pará”, relembra.
Batista também falou sobre a situação atual da luta por reforma agrária. Segundo ele, o Brasil tem hoje cerca de 65 mil famílias do MST acampadas, cerca de 13 mil apenas no Pará. O governo federal anunciou a meta de assentar 12 mil famílias até abril, mas Batista aponta que a execução está aquém do necessário.
“Tem famílias há 20 anos acampadas. Por mais que exista o diálogo, o desenvolvimento das ações ainda é muito tímido. É preciso acelerar a aquisição de terras para assentar essas famílias”, diz. “Tivemos também quatro anos com todas as ações voltadas para a reforma agrária totalmente paradas, houve criminalização. Foi um retrocesso”, cita, relembrando o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
“Ouvi eles gritarem: ‘Querem terra? Terão sete palmos de terra'”
O relato de Batista sobre o massacre é marcado pela lembrança viva do horror. Aos 15 anos, ele viu de perto companheiros baleados, correu para se esconder atrás de árvores, ouviu a polícia gritar que daria “sete palmos de terra” aos sem-terra, e reencontrou a mãe e os irmãos horas depois, no escuro. Em meio à violência, viu uma mulher baleada sendo arrastada por um homem com uma bíblia na mão, tentando salvá-la, e, no dia seguinte, se deparou com o chão tomado por sangue, pedaços de corpos e pertences queimados. “Crueldade da forma mais profunda”, diz.
Leia o relato de Batista Nascimento na íntegra:
As famílias marchavam desde o dia 10, 1,5 mil pessoas. Eu tinha 15 anos. Estavam comigo minha mãe e meus quatro irmãos mais novos. Meu pai saiu pela manhã para retornar ao acampamento, porque havia a expectativa de que, na manhã do dia 17, o Estado cumprisse um acordo feito com as famílias: desbloquear a BR para que ônibus levassem os manifestantes até Marabá, com alimentação e transporte de representantes até Belém, onde era a sede da superintendência do Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] na época. Quando ele tentou voltar, a estrada já estava bloqueada dos dois lados, com a polícia a postos. Ele não conseguiu passar. Só conseguiu chegar à Curva do S depois do massacre, quando já tinham removidos os corpos e liberado o espaço.
Quando o batalhão de Marabá chegou, por volta das 16h, fez um paredão e começou a jogar bombas de efeito moral e a atirar. Não veio uma comissão para conversar com as famílias, pedir um ato pacífico – nada. Foi um cenário de loucura. As famílias começaram a correr, tentando recuar. Nosso companheiro Amâncio, conhecido como “Surdo”, estava com um facão. Quando levou a mão ao facão, um policial mirou nele e atirou. Ele caiu a três ou quatro metros de mim. Uma bomba de efeito moral estourou nas costas de um senhor, e os estilhaços queimaram meu braço. Quando vi Amâncio caído no chão, tremendo, percebi: eles vieram para nos matar.
Tentei correr para o lado do Monumento das Castanheiras Mortas, mas havia muito mato e espinhos. Tive receio de entrar e ser atingido por uma bala ou ser visto pelos policiais. Retornei, atravessei o asfalto agachado e me escondi atrás do carro de som. Vi os companheiros resgatando outros feridos com tiros nas pernas, nos braços, na boca. Um senhor do nosso grupo socorreu uma moça que levou um tiro na boca. Ele carregava uma bíblia dentro de uma sacola, quando a segurava e tentava correr, arrastando-a para salvá-la.
Corri para uma casa onde um núcleo de famílias do MST estava fazendo comida, tentando encontrar a minha mãe e meus irmãos. Justo nesse momento, um rapaz que levou um tiro no olho agonizava, e a mãe dele estava desesperada. Uma repórter viu os policiais se aproximando e gritou: “Não venham para cá, só tem crianças, mulheres!”.
Tentei empurrar a porta para entrar, mas estava cheio de gente. Fiquei com medo. Corri até um campo de futebol, entrei no mato e me escondi atrás de uma árvore caída. Um senhor, baleado na coxa, estava lá também. Fiquei alguns minutos ali e depois entrei mais no mato, atrás de uma árvore de castanha seca, com outras pessoas. Os policiais foram até as barracas improvisadas de lona, onde dormíamos durante a marcha. De onde eu estava, os ouvi gritando: “Vocês querem terra? Agora vão ter terra: sete palmos!”.
Só quando os policiais terminaram a ação violenta, colocaram os corpos num canto, e formaram um paredão em frente a eles, o trânsito foi liberado. Eles gritavam, dentro das viaturas, para os carros passarem rápido. Veio então um grande fluxo de carros. Quando amanheceu, vimos nossos pertences queimados, as barracas desmontadas, panelas amassadas…
Por volta das 20h, consegui sair pela estrada em direção à comunidade Castanheiro. Fui procurar minha mãe. Encontrei ela por volta das 22h, com três dos meus irmãos. A mais nova, de seis anos, nós não encontramos. Encontramos meu pai por volta da 1h da manhã. Voltamos para o acampamento na Curva do S. Quando amanheceu, eu vi a dimensão da crueldade de forma mais profunda. Muitos restos de corpos humanos, pedaços de miolos, calçados… a pista toda ensanguentada.
Para ouvir e assistir
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