Quando surgiu há mais de uma década, em 2011, a série Black Mirror se tornou uma referência muito popular. Estávamos todos muito eufóricos com o “boom” dos smartphones baratos, a febre do Facebook e do antigo Twitter, tudo isso sustentado pela base material da conexão móvel, construída com a chegada do sinal 4G, mais rápido e funcional, disponível a partir de 2012.
Um divisor de águas irreversível na nossa experiência do mundo. Não era mais necessário se sentar diante de um desktop para se conectar à rede. Estávamos conectados 24 horas por dia. A vida passou a ser mediada por telas. E nossa subjetividade constituída inevitavelmente a partir de algoritmos.
Antes disso, você carregava uma câmera digital, fazia fotos numa festa e depois, em casa, sentava no computador, editava as fotos e as postava no seu álbum. O algoritmo seguia a ordem cronológica. Não havia stories, influencers e as seitas neo fascistas tinham certo receio de mostrar o rosto. Sem WhatsApp, as questões de trabalho morriam com mais frequência no trabalho. E só demandas mais urgentes geravam um SMS objetivo e ou uma ligação por voz, em casos mais graves.
Parecia um mundo um pouco mais lento. Com divisões mais claras entre vida pessoal e vida pública.
Ceticismo crítico
Antes mesmo do revés da Primavera Árabe, dos enxames de notícias falsas interferindo em eleições e o crescimento exponencial da extrema direita alimentada pelos algoritmos fascistas, Black Mirror, como antigas fábulas cyberpunks dos anos 1980 e 1990 já mostrava que a cibercultura não era mar de rosas imaginado por Pierre Lévy, para quem até o inconsciente freudiano seria dissolvido nas virtualidades potenciais da rede digital.
Contra esse pensamento ingênuo, um episódio após o outro, a série Black Mirror mostrava que a tecnologia talvez não fosse muito boa para potencializar nossas virtudes. Talvez ela fosse mais eficiente em arrancar com precisão aquilo que havia de mais sombrio em nós e na sociedade. No jogo cego da máquina algorítmica, o mal tornara-se um vencedor quase indestrutível.
Episódios clássicos como Quinze Milhões de Méritos (Episódio 2, Temporada 1) ilustram com precisão essa lógica perversa. Ambientado em um mundo onde indivíduos são condicionados a pedalar para gerar energia e acumular méritos virtuais — a única moeda possível —, o episódio revela como os sistemas gamificados e as ilusões de ascensão social sustentados pela falácia da meritocracia são apenas máscaras para um ciclo brutal de exploração. E mesmo quando o protagonista rompe com o sistema, sua fúria é capturada, estetizada e transformada em mais um produto lucrativo do espetáculo. É o triunfo da engrenagem: o protesto vira entretenimento, e a rebelião, mercadoria.
Em Queda Livre (Episódio 1, Temporada 3) estamos em plena ditadura dos likes. Cada interação social é avaliada por meio de notas em um aplicativo, criando uma hierarquia baseada em aprovação digital. A protagonista, obcecada por manter uma pontuação alta, vê sua vida desmoronar após uma série de eventos que a fazem perder status. As plataformas controlam não só o acesso a serviços e oportunidades, mas a moral e os processos de subjetivação.
Não somos donos de nada
[Spoilers da 7ª temporada a partir daqui]
Na nova e sétima temporada, chama a atenção o episódio Gente Comum, (Episódio 1). Acompanhamos um casal, Amanda e Mike, trabalhadores de classe média baixa que são repentinamente acometidos por uma grave questão de saúde. Amanda descobre repentinamente um tumor cerebral e entra em estado vegetativo. Sem tratamentos médicos convencionais à disposição, Mike é orientado pela médica a procurar a RiverMind, uma startup experimental que consegue criar uma cópia digital da parte danificada do cérebro através de um implante. Um milagre da biotecnologia.
Mike está angustiado. Ele é um metalúrgico e não acredita que poderá pagar por um serviço tão sofisticado. “A cirurgia é grátis”, diz a agente de relacionamento da empresa. “Basta assinar nosso plano.”
Amanda poderá continuar existindo — consciente, funcional e com sua personalidade preservada — desde que os pagamentos mensais sejam mantidos. A mente dela, agora parte em carne e parte em nuvem, passa a depender de um sistema de assinatura digital, sujeito a instabilidades técnicas, reajustes tarifários, área de cobertura e um bizarro sistema de anúncios.
Para conseguir fazer upgrades no plano e poder viajar para além do condado onde mora, Mike se cadastra em um site de monetização de conteúdo: ele precisa expor a si mesmo a situações degradantes e humilhantes, enquanto recebe pagamentos digitais dos usuários. Entre ingerir a própria urina e arrancar os próprios dentes ao vivo, o marido faz de tudo para conseguir manter a esposa funcional e viva.
Vale a pena viver uma vida assim? De servidão completa e irrestrita? Como será a vida de uma população cada vez mais envelhecida, precarizada, sem segurança trabalhista e tendo que lidar com investidas cada vez mais graves de discursos de austeridade?
[Fim dos spoilers]
Tecnofeudalismo e cyberpunk
A ideia do tecnofeudalismo é que não vivemos mais sob o capitalismo tradicional, mas sob um novo regime, no qual grandes plataformas digitais funcionam como senhores feudais. Uma empresa como a Amazon, Meta ou Google não pode ser explicada e entendida apenas pela categoria clássica do monopólio.
Como as grandes corporações das histórias cyberpunks, elas controlam esse território digital fértil, onipresente e inevitável à sobrevivência e ao trabalho no século XXI — e extraem valor não só do nosso trabalho, mas da nossa atenção, das nossas crenças religiosas e momentos de diversão. Somos servos conectados 24hs por dia, sete dias por semana. Os indivíduos tornam-se dependentes dessas plataformas para trabalhar, se comunicar, consumir e até existir socialmente.
Franco Berardi, em seu livro Depois do futuro, lembra que, ao contrário do movimento New Age, o pensamento cyberpunk não espera o apocalipse, mas o incorpora. Afinal, apocalipse quer dizer também revelação. Apropriação, quebra de código, hackeamento, uso pirata das tecnologias mais sofisticadas sempre foi uma sábia estratégia de sobrevivência das populações mais pobres nas fábulas da ficção científica. Talvez possamos tirar alguma lição daí.
*Marcos Vinícius Almeida é escritor, jornalista e redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, colaborou com a Ilustríssima da Folha de S. Paulo e O Globo. É autor do romance Pesadelo Tropical (Aboio, 2023).
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.