Não, querida gente leitora do Brasil de Fato Pernambuco, o título de nossa conversa neste mês não é um delírio. É um desafio aberto à autoproclamada bancada evangélica no Congresso Nacional.
Sua recente campanha de defesa dos atos golpistas de extrema direita no 8 de janeiro de 2023 tem aprofundado seu tradicional desprezo à democracia e aos direitos da classe trabalhadora de forma inacreditável. Não por acaso carrega a pecha de bancada dos 3 B’s: Bíblia (fechada, para justificar a bala), bala (para guardar o boi) e boi (para engordar o bolso).
Como se dá anualmente, neste abril, pessoas e organizações cristãs de todo o globo celebram a Páscoa, memória coletiva da morte e ressurreição de Jesus. Também em abril, o Movimento dos Trabalhadores Rurais (MST) convida, através do Abril Vermelho, à memória do Massacre de Eldorado do Carajás (1996), no qual a Polícia Militar do Pará assassinou 21 trabalhadoras rurais que lutavam por terra.
Essa coincidência é uma chance única para que quem pretende compromisso público com o Evangelho assuma a linha de frente na luta pela Reforma Agrária Popular. As razões são bíblicas, teológicas e históricas.
Se abrirmos a Bíblia (ao invés de usá-la ideologicamente), veremos que a Páscoa surge na cultura de Jesus como uma festa popular que celebrava a libertação de um povo escravizado. Não foi uma fuga mística, mas uma revolução: Deus ouve o grito dos hebreus (Êxodo 3:7) e os leva para uma terra onde “correm leite e mel” (Êxodo 3:8). Não há dúvidas sobre ter sido o Êxodo um levante popular de pessoas escravizadas contra o sistema faraônico, que explorava sua força de trabalho.
Essa experiência gerou dois princípios legais que, até hoje, desafiam ecológica e economicamente quaisquer sistemas sociopolíticos (Êxodo 23:10-11; Levítico 25:1-22; Deuteronômio 15:1-18). Segundo o primeiro princípio, o sabático, além do descanso semanal do trabalho, a cada sete anos a terra deveria também descansar e as escravizadas serem libertadas.
Já o segundo princípio, do Jubileu, a cada 50 anos as dívidas deveriam ser perdoadas e as propriedades perdidas devolvidas às famílias. Por isso a tradição profética denuncia a ganância que “ajunta campo após campo” (Isaías 5:8; 61:1-2), criando latifúndios e destruindo a sagrada economia antimonárquica, a partir da qual cada pessoa poderia viver fartamente sob “sua videira e sua figueira” (Miquéias 4:4).
Essa experiência do Sagrado Libertador não se limita ao passado. O Movimento de Jesus reinterpretou a Páscoa hebraica à luz da tradição messiânica e ampliou seu sentido para toda a humanidade.
Na Última Ceia, o Mestre ligou sua morte à Páscoa. De modo que, novamente ressuscitado em cada partilha dominical, alimenta a esperança de um mundo onde humilhadas são exaltadas (Lucas 1:52), oprimidas serão libertas (Lucas 4:18), famintas serão saciadas e empobrecidas herdam a terra (Mateus 5:3-6). Fez-se, assim, luz das nações (Lucas 2:30-32; João 8:12; João 12:46; Atos 13:47).
Se a Páscoa é a vitória da vida sobre a morte, como ficar de braços cruzados diante do latifúndio? Ele é máquina de moer gente: expulsa famílias de suas comunidades originárias, concentra terra e renda, precariza condições de trabalho (tornando-o análogo à escravidão), destrói o meio ambiente e enche nossos pratos de veneno. A monocultura extensiva, seu braço técnico armado (por vezes, literalmente!), seca rios, desertifica o Semiárido e alimenta tragédias e catástrofes climáticas.
Em contraste com outros países, cujas elites dirigentes vêm plantando e colhendo crescimento econômico e diminuição da desigualdade socioeconômica por meio da reforma agrária desde o século 19 – EUA (1862), Japão (1947), China (1950-53) etc. –, as elites brasileiras, atrasadas, insistem no agronegócio privatista e colhem morte, sofrimento e violência. Nesse contexto, devemos nomear uma das expressões da força regeneradora da mensagem pascal em nossa sociedade: Reforma Agrária Popular.
Enquanto o latifúndio destrói, a reforma agrária entre nós, mesmo ainda muito tímida, prova que outro caminho é possível. Dados da FAO, Incra, IBGE, Oxfam e CPT informam, por exemplo, que os assentamentos, apoiados pelo MST, ocupam apenas 25% das terras agricultáveis, mas produzem 70% dos alimentos que chegam à mesa brasileira. É a agroecologia – técnica que recupera solos, garante comida de verdade para mais de 350 mil famílias, mantendo-as no campo com dignidade – mostrando que partilhar a terra não é utopia, é eficiência científica.
Nosso país precisa ampliar a reforma agrária, cumprindo o mandamento bíblico de que “a terra não será vendida para sempre, porque é minha” (Levítico 25:23). Quando famílias sem-terra recebem um pedaço de chão para plantar, não estão só comendo melhor – estão vivendo a promessa de que “os humildes herdarão a terra” (Salmos 37:11) e reconstruindo, como diz Isaías (58:12), “os lugares arrasados”. Isso é mais que caridade, é Justiça. E a Bíblia é clara: a fé sem obras é morta (Tiago 2:17).
Reforma Agrária Popular é Páscoa permanente, que pode transformar desertos em cidades-jardins (Apocalipse 21-22), onde todas podem ter vida abundante (João 10:10).
No Brasil, 1% dos donos de terras controlam mais de 50% do território agricultável. Enquanto isso, as pequenas propriedades agrícolas – metade das propriedades rurais – são espremidas em apenas 2% do território. Como uma pessoa seguidora de Cristo poderia se calar diante disso?
Lideranças evangélicas e suas representações no Congresso preferem militar ao lado da bala e do boi em vez de gritar, como Maria, que Deus “derruba os poderosos e levanta os humildes” (Lucas 1:52)? Se a Bíblia manda repartir a terra, por que insistem em defendê-la como mercadoria?
Certamente devemos procurar a resposta para essas perguntas na aliança espúria entre púlpito e latifúndio, ali onde o Pai da Mentira (João 8:44) escondeu a ética evangélica. Afinal, enquanto o povo passa fome, sacrifica-se o Evangelho transmutando-o em ideologia mortífera de culto a Mamon, nome dado pelo próprio Nazareno ao único fenômeno por ele apontado como um outro deus possível, a ganância pelas riquezas e dinheiro (Mateus 6:24 e Lucas 16:13).
O título de nossa conversa é mais que uma ironia à toa. Escancara a contradição de um Brasil onde pessoas nomeadas como evangélicas serão 35% da população em 2026, mas sua representação política insiste em negar Direitos Humanos e democracia. O que, em última análise, não deveria surpreender, já que a própria Bíblia alerta sobre isso.
Em seu próprio deserto quaresmal, Jesus foi tentado a usar a religião para ganhar poder, riqueza e status (Mateus 4:1-11). O tentador até citou versículos bíblicos… O Mestre o enfrentou, porém, com o rigoroso discernimento interpretativo de quem estuda as Escrituras contextual e integralmente, fazendo-se exemplar na resistência ao mal mesmo quando ideologicamente apresentado em forma de religião.
Cabe a nós, em nosso tempo e espaço, a responsabilidade de enfrentarmos os desertos de nossa realidade por meio do firme discernimento pascal, que ilumina nossa travessia rumo à verdade cósmica e infinita do Amor-que-tudo-criou-e-sustenta. Caso contrário, poderemos ser surpreendidos, no Julgamento da História, de modo bem diferente do que nossas arrogantes pretensões religiosas sugerem.
“Então ele dirá (…): ‘Malditos, apartem-se de mim (…), pois eu tive fome e vocês não me deram de comer; tive sede e nada me deram para beber; fui estrangeiro e vocês não me acolheram; necessitei de roupas e vocês não me vestiram; estive enfermo e preso e vocês não me visitaram’. Eles responderão: ‘Senhor, quando te vimos com fome ou com sede ou estrangeiro ou necessitado de roupas ou enfermo ou preso e não te ajudamos?’. Ele responderá: ‘Digo-lhes a verdade: o que vocês deixaram de fazer a alguns destes mais pequeninos, também a mim deixaram de fazê-lo’” (Mateus 25:41-45).