A semana santa é um dos principais eventos do cristianismo no Brasil. Nela é celebrada a morte e a ressurreição de Jesus Cristo. Além disso, a data também é marcada por comemorações e festejos populares, principalmente, no Sábado de Aleluia, quando acontece a Festa dos Caretas e a Malhação do Judas. Mas você sabe como surgiu essa tradição? Como ela está atualmente? O que ela representa? E para responder essas e outras perguntas o Brasil de Fato conversou com a Dra. Lourdes Macena, professora do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Ceará – campus Fortaleza e diretora geral do grupo Miraira.
Confira a entrevista.
Brasil de Fato: O que é a tradição dos caretas na semana santa?
Lourdes Macena: Os caretas, ou os papangus, porque, dependendo da localidade pode receber nomes diferenciados, mas se trata de folia similar. Ela também está dentro da Semana Santa, mas em alguns lugares ocorre também durante o Carnaval.
Os caretas são personalidades, personagens que se apresentam mascarados para não serem reconhecidos. Os caretas apresentam esse desejo de foliar, de brincar, e vamos dizer, de punir, se é que eu posso chamar assim, de brincar punindo por meio de uma chicotada àqueles que se encontram pela praça, pela rua. Eles também saem fazendo algumas brincadeiras, cantigas, resmungos com o único objetivo de produzir felicidade durante os festejos da Semana Santa.
E o que os caretas simbolizam?
Eu acredito que os caretas nos traz essa grande capacidade de reinvenção que o homem tem e que, dentro dessa figura, que se apresenta na Semana Santa ele vem também com essa força do invisível, de trazer dentro daquela fé cristã essa forma também de combater o mal, de personalizar a nossa folia como uma forma de estar dentro, não da brincadeira do Judas, mas de algo que é também similar, de combater o mal nesse período.
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Na Semana Santa também temos a tradicional malhação de Judas. Em que consiste essa atividade?
Eu digo sempre, quando estou nas aulas, o termo “malhação” não é um termo advindo aqui do nosso lugar. Durante muito tempo muita coisa que era escrita vinha do Sudeste e então lá no Sudeste eles trabalham realmente de malhar, ou seja, eles jogam pau, jogam pedra, jogam coisas no Judas, aqui não, a gente coloca logo fogo, a gente resolve logo essa situação.
A brincadeira do Judas pelo interior sempre teve muitas partes, algumas são mantidas e outras trocadas como, por exemplo, dentro da brincadeira do Judas a gente tinha o “sítio do Judas”. Esse sítio do Judas era de cacho de banana, de mamão, de milho, de coisas que a gente “roubava” ou a gente “pegava” no sítio do outro, na fazenda do outro, e havia esse código, qual era o código? Roubado ou pegue para o sítio do Judas estava levado. Ninguém podia ir lá reclamar. Então, todo mundo tinha que vigiar os seus sítios. No sítio do Judas era feito um grande lugar de comilança onde todos comiam, todos saboreavam. Aquilo tudo era partilhado com a comunidade. A folia do Judas se transformava numa grande festa onde o queimar o Judas era o ápice, mas no sítio do Judas tinha a comida coletiva, a presença do forró, a música onde a comunidade vai se encontrar e o Testamento do Judas.
É comum a gente observar que a confecção do boneco de Judas ganha características de algumas personalidades. Por que isso virou uma característica da produção do boneco do Judas?
O uso do boneco nas folias populares entra para o nosso país por influência do colonizador português ou do invasor, como você queira chamar. Os colonizadores, tanto português como espanhol entram e vão trazendo coisas que a Europa já fazia, que vem desde o período medieval. O uso de bonecos em representações de pessoas, ou então de pessoas anônimas, simbolizando figuras imponente como, por exemplo, para simbolizar o clero, um rei, sem necessariamente ser a máscara do rei ou a máscara do papa e por aí vai.
Essa coisa ela já advém desde os tempos mais antigos, e isso entra para cá. A utilização do boneco está em várias outras folias para além da folia do Judas. Mas, também, é sabido que o homem simples sempre teve uma forma de interpretar, à sua maneira, do seu jeito, aquilo que ele sofre, vive, convive e, ao longo do tempo, já foi uma prática de se remeter a bonecos determinadas figuras, imagens de coisas para as quais eles queriam falar e se proteger também, porque a fala não vem deles, vem do boneco, do animado, digamos assim.
Então assim, essas coisas que apoquentam a vida comum, que destrói esperanças, que tira a confiabilidade no sistema e etc e tal, eles tentam resolver tocando fogo no boneco do Judas a cada oportunidade que eles têm. Então, isso se reflete porque ao longo do tempo mudam as figuras, mudam as pessoas, mas determinados poderes contra o povo continuam, sejam eles constituídos dentro do sistema ou seja de determinadas figuras que ocupam o território onde essas pessoas habitam.
Na sua opinião, essas tradições ainda se mantêm fortes nos dias atuais ou há um distanciamento em relação à geração mais jovem?
Digamos que, nas capitais, a gente sempre tem uma dificuldade muito grande em competir com as ofertas que são enormes, mas é muito importante que as pessoas entendam que alguns defendem a tradição, mas não entendem que tradição não é você falar de um passado histórico. Quando você diz que algo havia e que não tem mais isso não é tradição, isso é história, isso está no passado.
Tradição é algo que acontece aqui, agora. A tradição de Judas é brincar de Judas, é fazer o boneco, é queimar o Judas, é fazer o testamento. A tradição sobrevive na forma como nós podemos fazer com que isso possa ser vivido e não apenas lembrado pela oralidade de como era, mas vivido, vivenciado. Eu diria que muitos aspectos da nossa cultura, inclusive, da queima de judas, continuam dentro dos espaços que lhe são dados.
Quais são os valores simbólicos dessas manifestações populares e culturais?
Talvez, a coisa mais importante é consolidar a obrigatoriedade que a gente tem de amar. De ser seres que amam, que se veem, que entende que você só pode ser com o outro. Nós não fomos concebidos para sermos sozinhos. Todos esses símbolos da tradição popular falam de como precisamos foliar, rir, dançar e brincar com o outro. A simbologia da páscoa ainda é uma simbologia que fala de amor, que fala de encontro.

Você é diretora geral do grupo Miraira. O que é esse grupo e quais atividades são realizadas por vocês?
Nós somos do campus Fortaleza. Eu estou com essa atividade há 43 anos. O grupo Miraira é um grupo que congrega jovens, mas também pessoas de qualquer idade, porque temos pessoas longevas, assim como eu, e também adolescentes, mas a sua grande predominância é de pessoas adultas.
É um grupo que trabalha em fazer difusão da tradição popular com a parte cênica e musical. Nós temos um grupo de pesquisa cadastrado no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que é o Grupo de Estudos em Cultura Folclórica Aplicada, nós temos também um laboratório de práticas dentro do Instituto Federal, o Laboratório de Práticas Culturais Tradicionais, onde fazemos práticas cotidianas, é um espaço para a juventude ir e para poder viver as tradições populares do Ceará, do Nordeste, do Brasil e, principalmente, da América Latina.
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