Jesiê Reinert*
A história da luta pela terra no Brasil remonta à invasão portuguesa, em 1500. Desde lá, a política de ocupação sempre foi de expulsão das comunidades mais vulneráveis e a predominância do latifúndio. Passando pela Lei de Terras, Constituição Cidadã e Estatuto das Cidades, o cenário fundiário das cidades só se agravou, condicionando, cada vez mais, a situação de precariedade das moradias ao acesso inadequado à infraestrutura essencial como energia elétrica, esgotamento sanitário, água potável, saúde, educação, transporte, lazer e geração de renda. Isso sem falar do risco imediato de morte de famílias que residem em encostas e áreas alagadiças.
Em 2017, entrou em vigor a Lei Federal 13.465, que instituiu a política de regularização fundiária, a qual está sendo bastante utilizada atualmente pelos municípios. À época, a lei foi bastante criticada, inclusive por movimentos sociais de luta pela terra, eis que aprovada pela bancada ruralista e acusada de promover grilagem de terras, especulação imobiliária e enfraquecimento do poder popular.
Fato é que, mais de sete anos após a entrada em vigor da lei, alguns poucos municípios conseguiram avançar na aplicação da conhecida REURB (assim como é chamada a regularização fundiária através da Lei 13.465/17), tema que tem ganho destaque nas discussões sobre permanência na terra ocupada.
A REURB prevê vários mecanismos de regularização fundiária, tais como a legitimação fundiária (propriedade definitiva), legitimação de posse (propriedade definitiva após cinco anos), desapropriação em favor dos possuidores, Concessão de Uso para Fins Especiais de Moradia (CUEM), Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) e reconhecimento de contratos de compra e venda, entre outros (artigo 15 e seus incisos).
Além disso, traz a possibilidade de permanência das ocupações em áreas de preservação permanente, desde que realizados estudos técnicos que prevejam a melhoria da condição ambiental anterior (artigo 11, §2º). Outro ponto importante são as flexibilizações urbanísticas e edilícias, que permitem a regularização das vias e construções no estado em que se encontram, desde que não apresentem risco (artigo 11, §1º). São passíveis de regularização áreas públicas e privadas.
Por esse prisma, não importa, para a REURB, como se deu a ocupação, se foi gratuita (sem pagamento) ou onerosa (com pagamento). Outros requisitos deverão ser observados, especialmente a condição de vulnerabilidade das famílias, bem como o tempo e a consolidação da ocupação.
E o mais importante: para as ocupações consideradas vulneráveis, o Poder Público está obrigado a levar infraestrutura essencial (luz, água, esgoto e drenagem) antes, durante ou depois do processo de regularização, com assinatura, geralmente do prefeito, em cronograma de obras e termo de compromisso que têm força de títulos executivos e podem ser cobrados pela própria comunidade, caso a infraestrutura não seja implementada em tempo razoável.
Tão importante quanto as análises urbanísticas e ambientais, também é o cadastramento socioeconômico da população beneficiada. As comunidades irregulares não são conhecidas do poder público. O cadastro socioeconômico vai demonstrar a vulnerabilidade da comunidade e ajudar a identificar quais as necessidades de investimentos em políticas públicas de forma direcionada e acertada. Mais escola, saúde, atenção ao idoso, tudo aquilo de que a comunidade realmente precisa.
A referida lei está longe de ser perfeita do ponto de vista da luta pelo território, mas a pergunta ou reflexão que aqui se faz é: como podemos nos apropriar dessa lei, (que tem origem controversa, é verdade) para o bem da classe trabalhadora e para lutar pela permanência nos territórios, tanto aqueles que estão com sua situação pacificada quanto aqueles que se encontram em conflito fundiário? Sim! A REURB pode e deve ser utilizada para evitar despejos e já temos jurisprudências nesse sentido.
Entender o grande leque de possibilidades que a REURB nos traz, enquanto movimento popular, seja pela permanência na terra, seja para acessar moradia digna, é fundamental para que nossa luta por direitos seja qualificada.
A cobrança pela aplicação da Lei de REURB a nosso favor é um papel que nos cabe. O direito à moradia digna é estabelecido pela Constituição e pode e deve ser instrumentalizado pela Lei 13.465/17.
Precisamos nos preparar, conhecer esse direito a fundo e cobrar, não apenas uma regularização fundiária de papel, e sim aquela prevista na lei, que entrega infraestrutura, moradia digna e uma cidade regular para todas as pessoas, indistintamente. É direito de morar, morar com direitos!
*Jesiê Reinert é advogada especializada em regularização fundiária e militante do MTD no Paraná.