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Mais uma morte no Hospital São Vicente de Paulo: até quando?

"Quanto corpos mais precisam cair para que o HSVP seja fechado? Quantas mortes mais precisam ser banalizadas?"

Mais uma morte no Hospital São Vicente de Paulo (HSVP), o manicômio público e ilegal do Distrito Federal.

Menos de quatro meses depois da morte de Raquel França de Andrade, na noite de Natal, temos a morte de Eva de Oliveira Silva, de 52 anos, natural da Bahia, na madrugada do dia 22 de abril. Segundo relatos, ela caiu no banheiro, batendo a cabeça. Foi socorrida, primeiramente, por outra mulher internada – da mesma forma que aconteceu com Raquel.

Eis mais uma morte anunciada e denunciada. O que resta a dizer, se não repetir e reforçar o que já se tem dito? Por exemplo, que o manicômio é instituição de violência, de mortificação – física e simbólica.

Quanto corpos mais precisam cair para que o HSVP seja fechado? Quantas mortes mais precisam ser banalizadas?

Que nível de mortificação/desumanização é este que o manicômio nos impõe a ponto de aceitarmos tudo isto? Pior, justificarmos tudo isto, como se fosse um “mero efeito colateral” ou algo “natural”? Ou como se não houvesse saída.

Ora, mas o que fazer com as pessoas que lá estão, se não temos serviços suficientes, alguns podem perguntar? A pergunta que deve ser feita é outra: o que estamos fazendo com as pessoas depositadas no HSVP – e em todos os manicômios?

E mais, como temos dito, reiteradamente, um dos principais motivos de não termos serviços suficientes, e mais, serviços abertos, fomentando um cuidado em liberdade na saúde mental no Distrito Federal é justamente a permanência, a manutenção do HSVP. O manicômio funciona como um imã, sustentando um circuito psiquiátrico.

Novamente, nos colocamos aqui a repetir o óbvio. Não há comparação entre um hospital psiquiátrico, isto é, um manicômio e os hospitais gerais – ou qualquer outro serviço de saúde. Por exemplo, se houver nos últimos a reprodução da lógica asilar-manicomial, que institucionaliza, que violenta e viola direitos, mortificando física e subjetivamente as pessoas, temos ali um desvio, algo a ser corrigido.

Já nos hospitais psiquiátricos o normal, a norma é a institucionalização, a violência – só que com roupagens de cuidado. Não se trata, portanto, de um desvio, uma anomalia. O hospital psiquiátrico é a materialização, enquanto instituição por excelência, da lógica asilar-manicomial.

Portanto, não há reforma possível no que é, por natureza, desumano, inumano. Não há correção de rota naquilo que a rota não permite correções. O que resta é abolir a rota, superá-la; construir outros caminhos.

Além de uma aberração ética, humana, o manicômio é também um erro técnico-político.

Enquanto hospital psiquiátrico, ele se volta a atender exclusivamente as demandas psiquiátricas. Desde a sua estrutura, com os equipamentos e os insumos, até a equipe profissional, sua formação e expertise, ele se orienta a – supostamente – tratar das demandas e necessidades psiquiátricas dos indivíduos.

A questão é que os indivíduos, mesmo aqueles que possuem necessidades psiquiátricas, não podem ser resumidos a elas ou fragmentados às partes que os constituem, que dizem deles como indivíduos na sua totalidade. Nisso, é muito difícil, se não impossível, que uma pessoa tenha “apenas” necessidades assistenciais psiquiátricas, ou seja, que também não tenha outras necessidades assistenciais clínicas, de saúde em geral.

Contudo, o hospital psiquiátrico é específico para as necessidades assistenciais psiquiátricas. O que ocorre, portanto, é que ou ele atende tais necessidades, deixando as outras desassistidas, ou ele encaminha as pessoas com necessidades clínicas para outros serviços de saúde, mormente hospitais gerais.

Nisso, para além do erro de se fragmentar o indivíduo, como ele se produzisse de tal forma ou fosse essas fragmentações, essas partes, temos que o hospital psiquiátrico é muito pouco resolutivo. Ele pode atender muitas pessoas, mas o que ele faz, na verdade, é atender partes destas pessoas, quando não as institucionaliza, violenta. Logo, o que temos é uma não assistência; uma desassistência.

Há ainda os casos em que as pessoas são depositadas nos manicômios por outras necessidades de vida, como falta de vínculos e laços sociais, alimentação, moradia etc. O que temos nestes casos é que, por mais que a internação dessas pessoas no hospital psiquiátrico satisfaça algumas destas necessidades mais básicas, ela o faz nos marcos da desumanização, da mortificação, do aprisionamento, dentre outras características constitutivas do manicômio; sem as quais ele não existe, não é. Em suma, o que temos é a desassistência, uma vez mais.

Alguns podem ainda perguntar: ora, se temos serviços especializados na saúde, por que não podemos ter um hospital psiquiátrico?

A resposta, baseada na própria realidade, deve se iniciar pelo fato de que, diferentemente do manicômio, as pessoas em tais serviços não correm o risco de serem institucionalizadas, de serem presas, violentadas, dentre outras possibilidades típicas do manicômio e sua lógica asilar-manicomial. E se correm, há algo a ser corrigido, ao contrário do manicômio, em que o normal é a institucionalização e a violência, como mencionado.

Mais do que nunca, é fundamental entendermos que o manicômio não é instituição de cuidado, mas de violência. Os casos de Raquel, Eva e de tantas outras pessoas demonstram isso.

Por Raquel, por Eva e por estas tantas outras, o HSVP precisa ser fechado imediatamente! Que os corpos que nele estão depositados, saiam pelos seus próprios pés e pernas em direção a uma vida em liberdade e não mais em sacos pretos rumo ao IML.

Raquel, PRESENTE!

Eva, PRESENTE!

Pelo fechamento imediato do HSVP!

Pelo fim de todos os manicômios!

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*Pedro Costa é membro do Grupo Saúde Mental de Militância do Distrito Federal UnB.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

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