Por Mabel Dias*
A professora e pesquisadora Eliara Santana é uma das principais referências no Brasil quando o assunto é desinformação. Diariamente, em seu perfil no Facebook, ela faz análises sobre o cenário político no Brasil e em outros países, como os Estados Unidos, onde a extrema direita voltou ao poder e o fenômeno da desinformação se alastra como um rastilho de pólvora, minando a democracia naquele país, com reflexos aqui no Brasil.
No dia 24 de março, a pesquisadora esteve em João Pessoa, participando do Seminário Misoginia, Desinformação e Discursos de Ódio na Mídia do Século 21: desafios para os direitos humanos, realizado pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, com apoio do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo (PPJ), da UFPB.
A palestra ministrada por Eliara Santana foi sobre o ecossistema de desinformação bolsonarista, que segue ativo, mesmo com Jair Bolsonaro não sendo reeleito em 2022 e estando fora, oficialmente, do jogo político para as eleições de 2026. Aproveitamos a vinda de Eliara Santana, novamente, à João Pessoa, para conversar com ela sobre esse assunto e como nós, enquanto sociedade, podemos agir para combater a desinformação.

Confira a entrevista:
Mabel Dias: Em seu livro Jornal Nacional – um ator político, você fala sobre a influência desse meio de comunicação no impeachment da ex-presidenta Dilma Roussef, em 2016, e na prisão do presidente Lula, em 2018. De que forma isso ocorreu? A mídia tem esse poder?
Eliara Santana: Como eu discuti bastante em minha tese, o Jornal Nacional criou uma poderosa narrativa baseada em dois repertórios: crise econômica e corrupção. Para esclarecer, repertórios são temas que delimitam, constrangem a construção de notícias relativas a determinados assuntos. Os assuntos relativos a economia eram sempre circunscritos ao repertório crise econômica, mesmo quando os números da economia não mostravam isso – por exemplo: numa reportagem sobre compras de Natal, o repórter pergunta aos entrevistados, num shopping: ‘Você tem medo da volta da inflação?’; ao que os entrevistados, cheios de sacola, respondem: ‘Sim’.
Em relação à corrupção, a famosa imagem de um fundo vermelho, com dutos enferrujados de petróleo por onde escorria muito dinheiro, resumia para o imaginário nacional o entendimento sobre corrupção. Detalhe: essa imagem referia-se apenas a determinados grupos e políticos, especialmente do PT. Era uma ressignificação direcionada, portanto.
A narrativa de que o país vivia em crise – política e econômica – e que os culpados eram Dilma e Lula era diariamente disseminada pelas notícias e se consolidou na percepção dos espectadores sobre o contexto nacional. Essa narrativa deu fôlego à Operação Lava Jato, e a parceria que se estabeleceu entre mídia e essa parte do judiciário é algo sem precedentes no Brasil. A narrativa criada e diariamente disseminada pelas notícias serviu para mobilizar as pessoas contra o governo Dilma e exigir sua saída, após um período de grande bonança econômica com os governos petistas. E Lula foi transformado no grande inimigo a ser combatido. A partir dessas ações combinadas, a democracia brasileira foi golpeada.
Sim, a mídia tem esse poder – e é bom que se frise que não falo aqui de um poder absoluto, que de fato não existe, mas ela desfruta sim de um enorme poder para agenciar temas, pautar o debate público, produzir narrativas, ressignificar os acontecimentos.
Em seu blog, o filósofo francês Pierre Levy afirma que as “gigantes da web” são o novo Estado. Você concorda com essa afirmação?
Não sei bem se podemos chamar de um novo Estado. Mas, sem dúvida nenhuma, elas se tornam instâncias poderosíssimas com condições para travar fortes embates com os Estados nacionais. Essas plataformas e seus CEOs concentram poderes num cenário nunca antes visto. Basta olhar o exemplo de Elon Musk, do X/Twitter: tem poder econômico e midiático e, agora, também político.
Donald Trump foi eleito nos EUA e tem como aliado Elon Musk, proprietário da plataforma digital X, e Marck Zuckeberg, CEO da Meta, plataformas digitais que têm propagado desinformação e discursos de ódio, e exercido uma grande influência sobre as pessoas. As plataformas digitais tiveram responsabilidade sobre a eleição de Trump?
A eleição de Donald Trump tem uma série de fatores, de elementos para explicar a eleição dele nos Estados Unidos, não é só um elemento, não foi apenas a ação das redes sociais e das plataformas, mas sim, a sistematização da desinformação, um ecossistema da desinformação, que teve um papel muito importante na eleição de Donald Trump, não há dúvidas quanto a isso, e as plataformas têm um papel importante na medida em que elas abrigam todo esse arsenal desinformativo e do discurso de ódio. Elas são abrigo para essas manifestações e esses grupos, que produzem e disseminam desinformação, eles estão, absolutamente, atuantes nessas plataformas, não há nenhuma estratégia ou política de controle.
Elon Musk, ainda em 2023, a primeira medida dele ao comprar o Twitter, foi banir os grupos que faziam a moderação de conteúdo, então, há sim uma responsabilização, um alinhamento, e mais grave, às políticas ultraconservadoras, de extrema direita, desse novo governo Trump, mas do que apoiar a eleição de Trump, as plataformas hoje estão, de fato, num alinhamento com o governo.
Trump fez uma política agressiva para perseguir jornalistas e pesquisadores que tratavam do tema desinformação, e de que maneira? uma perseguição econômica, então, houve um cerceamento a liberdade dos pesquisadores de explorarem, de pesquisarem esse tema, e de divulgar o conteúdo de suas pesquisas. Na eleição norte americana, pouco se falou sobre desinformação, esse cerceamento é um grande problema e tornou-se uma política de governo.
O que pode ser feito para que as plataformas digitais não continuem a influenciar as eleições, desestabilizar democracias, em diversas partes do mundo, entre elas, o Brasil?
Em relação a influência sobre as eleições, é preciso uma regulamentação das plataformas, é preciso discutir essa regulamentação. Esse é o primeiro caminho. O segundo caminho é um trabalho efetivo de educação midiática, isso precisa ocorrer em várias instâncias, e não estou falando de educação escolar, apenas, é preciso que esse tema se expanda, que ele seja colocado em todos os lugares possíveis, para todos os públicos, de uma forma de fácil assimilação, de fácil acesso, porque não adianta punir, ação judicial é importante, sobretudo de banimento ao discurso de ódio.
A regulamentação das plataformas é essencial, mas é preciso que funcione comum tripé: ação judicial, regulamentação e educação midiática, para que essa ação tão danosa seja minimizada, porque isso não vai ser encerrado, nós não vamos conseguir acabar com essa influência, nós vivemos em um mundo midiático, que é dominado pelas plataformas, pela comunicação, e a educação midiática deve contemplar, também, a mídia tradicional.
O governo federal tomou algumas medidas para combater a desinformação, como a adoção de programas de educação midiática, mas não tocou na responsabilidade da mídia corporativa. Dessa forma, como poderemos ter uma mídia ética e que não desinforme a população, como vimos no caso da Lava Jato e no impeachment de Dilma, se não englobamos outros atores que também podem desestabilizar a democracia?
É preciso pensar a educação midiática para o Brasil, não podemos importar discussões que estão sendo feitas fora do país, e sim, pensar essas questões de acordo com a realidade brasileira, de um país gigante, plural e profundamente desigual, isso nos molda, isso molda a nossa percepção, e constrange o acesso à informação, à cultura, a educação, é preciso pensar a política de educação midiática a partir da realidade brasileira, e digo mais, a partir de públicos, precisamos pensar educação midiática para evangélicos, por exemplo, para as juventudes, é preciso uma reflexão muito mais ampla, do que simplesmente traçar alguns programas, desenvolver conteúdos a partir de uma importação, digamos assim, de conteúdos e discussões já existentes, sem aprofundar na perspectiva da realidade brasileira.
Um dos caminhos adotados para combater a desinformação tem sido a criação de agências de fact-checking (checagem de fatos). Você acredita que esse mecanismo é eficaz e suficiente para resolver o problema da desinformação no Brasil?
Essas agências são muito importantes, elas cumprem um papel, agora, apenas a checagem não é nunca suficiente para resolver o problema da desinformação. Inclusive, porque há grandes agências sustentadas por grupos midiáticos que fazem a checagem. Então muitas vezes, a checagem vai se reduzir a checagem de fake news, mas e aquelas estratégias discursivas que são tão bem utilizadas pela mídia corporativa, não produzem conteúdo desinformativo? As agências de checagem chegam a esses aspectos? Elas cumprem, repito, um papel muito importante, mas essa ação, sozinha, não resolve, de forma alguma, esse problema da desinformação no Brasil.
A desinformação precisa ser tratada como um problema gravíssimo e ela precisa ser olhada de maneira ampla, com um olhar macro. Eu vejo ações isoladas, discussões que estão sendo propostas, mas acho que estamos ainda muito tímidos nessa discussão, muito tímidos para pensar soluções efetivas, porque é uma questão de sobrevivência democrática, cidadã e de não retorno a um cenário de grande retrocesso.
*Mabel Dias é jornalista, associada ao Coletivo Intervozes, conselheira de Transparência e Pesquisa na Coar – Agência de Notícias e Checagem Independente, observadora credenciada no Observatório Paraibano de Jornalismo, mestra em Comunicação pela UFPB e doutoranda em Conunicação pela UFPE. Autora do livro A Desinformação e a Violação aos Direitos Humanos das Mulheres: um estudo de caso do programa Alerta Nacional (editora Arribaçã).
**A opinião contida neste texto não necessariamente representa a linha editorial do Brasil de Fato.
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