O maior desastre climático e socioambiental, que devastou o Rio Grande do Sul e deixou 184 mortes, completou um ano. A enchente que deixou cerca de 100 mil residências destruídas ou danificadas em 478 dos 497 municípios gaúchos, segundo a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), ainda tem suas marcas no estado.
A tragédia, causada pela combinação dos efeitos do El Niño com as mudanças climáticas induzidas pelo ser humano, deixou mais de meio milhão de pessoas desabrigadas. Hoje, 24 pessoas seguem desaparecidas e 368 pessoas ainda estão desabrigadas. Segundo dados da organização MapBiomas, quase dois terços (61%) dos municípios do Rio Grande do Sul foram atingidos, em maior ou menor grau, pelos eventos climáticos extremos de abril e maio de 2024.
De acordo com o estudo cientifico desenvolvido pelo centro de pesquisas World Weather Attribution (WWA), Climate change, El Niño and infrastructure failures behind massive floods in southern Brazil (Mudanças climáticas, El Niño e falhas de infraestrutura são responsáveis por grandes inundações no sul do Brasil), o RS registrou chuvas persistentes e extraordinárias, equivalentes a três meses normais de chuva em um período de duas semanas, com um acúmulo médio de 420 mm entre 24 de abril e 4 de maio.

“As inundações revelaram a distribuição desigual da infraestrutura de proteção contra inundações, o que perpetua as desigualdades em ambientes urbanos. Regiões desprotegidas, tipicamente habitadas por populações de baixa renda, enfrentam maiores riscos de inundações e impactos associados”, aponta o estudo.
No futuro, a análise afirma que o RS enfrentará impactos mais frequentes e severos relacionados a inundações, especialmente se não houverem investimentos sérios em respostas de mitigação e adaptação. “Investimentos futuros em proteção contra inundações devem integrar considerações sociais, econômicas e ambientais ao planejamento urbano para ajudar a criar cidades mais inclusivas e resilientes.”

Conclusão similar é observada no relatório sobre os impactos das inundações de 2024 no RS, da Relatoria Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Redesca) da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). O documento reúne observações detalhadas e formula recomendações ao Estado brasileiro, com especial atenção aos efeitos diferenciados sobre populações em situação de vulnerabilidade e aos desafios estruturais que impactam a gestão de riscos.
De acordo com o relatório, o impacto das enchentes no Rio Grande do Sul em 2024 expõe a urgência de fortalecer políticas públicas baseadas na prevenção, adaptação e resposta eficaz aos desastres climáticos, a partir de uma abordagem de direitos humanos e justiça socioambiental que observe populações historicamente marginalizadas e novos grupos sociais afetados. “É fundamental que estratégias de prevenção, resposta e recuperação incluam a participação ativa das comunidades afetadas, garantindo que suas vozes sejam ouvidas e suas demandas sejam atendidas de maneira equitativa.”
Dia de Enfrentamento à Emergência Climática
Pensando em todo o cenário causado pelo desastre histórico, a Assembleia Legislativa instituiu, em 14 abril, o Dia de Enfrentamento à Emergência Climática, de autoria do deputado estadual Matheus Gomes (Psol). A data escolhida foi 4 de maio, dia em que foi publicado o Decreto Nº 57.600/2024, que reiterou o estado de calamidade pública em 265 municípios de forma oficial pelo estado.

“A motivação para o projeto vem da necessidade da defesa da memória, ao mesmo tempo que alerta para os problemas que o nosso povo ainda enfrenta desde as enchentes. Um ano depois e a reconstrução do estado está longe de acabar”, afirma Gomes em entrevista ao Brasil de Fato RS.
De acordo com o parlamentar, a efeméride é um ato de respeito à memória das vítimas das enchentes de 2024 e às famílias que até hoje vivem o luto. Também é um alerta para que os governos priorizem a preparação do estado para os novos desastres que virão.
Confira entrevista com o deputado sobre o tema:
Brasil de Fato RS: Estamos prestes a completar um ano da grande enchente. Diante disso, queria que nos falasse do significado da aprovação do Projeto de Lei (PL) 227/2024, que institui o Dia Estadual de Enfrentamento à Emergência Climática? O que te motivou a criar o projeto?
Matheus Gomes: A aprovação do PL de autoria do nosso mandato, que faz do 4 de maio o Dia Estadual de Enfrentamento à Emergência Climática no Rio Grande do Sul, é uma oportunidade de preservarmos a nossa memória e aprender com os erros do passado. A criação da efeméride é um ato de respeito à memória das vítimas das enchentes de 2024, às famílias que até hoje vivem o luto sem fim com os seus entes queridos que seguem desaparecidos. E também surge para reiterar o alerta para que os governos priorizem urgentemente a preparação do estado para os novos desastres que virão.
A motivação para o projeto vem da necessidade da defesa da memória, ao mesmo tempo que alerta para os problemas que o nosso povo ainda enfrenta desde as enchentes. Um ano depois e a reconstrução do estado está longe de acabar. Ainda temos unidades de saúde e escolas para serem reconstruídas, pontes e rodovias que precisam voltar à normalidade, as obras no aeroporto não acabaram.
A recuperação dos rios e bacias hidrográficas ainda é um processo lento. Os sistemas de proteção contra as cheias ainda não foram recuperados onde falharam, como é o caso de Porto Alegre, onde a cada temporal nem os geradores das Casas de Bombas o prefeito consegue fazer funcionar. E agora com o PL, o 4 de maio vai ficar eternizado como o dia que simboliza a mobilização social pelo clima, o Dia Estadual de Enfrentamento à Crise Climática no Rio Grande do Sul.

Quais os ensinamentos que a grande enchente deixou?
As enchentes e o nível de destruição evidenciaram a necessidade de fortalecer áreas do estado, como é o caso da Defesa Civil, das estruturas de proteção ambiental e de planejamento estratégico para a transição ecológica na economia e na infraestrutura. O que enfrentamos em 2024 também expôs os erros cometidos pelos governos que não podem ser esquecidos, e precisam se transformar em justiça climática. A emergência climática não vai nos poupar de novos eventos climáticos extremos, a questão é se estaremos preparados.
O Brasil de Fato RS, juntamente com o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), está fazendo um especial sobre o primeiro ano da grande enchente. Além de perfis de alguns atingidos, o especial aborda temas complexos como saúde mental e moradia, que demonstram os impactos que o evento trouxe para a vida das pessoas. Como tu analisa essas situações?
Vivemos dois anos em que centenas de famílias viram os seus lares sendo levados com a água. Para além do lar, do aconchego da família, memórias felizes que estavam em álbuns de fotos de décadas inteiras foram perdidas, os laços com os vizinhos que crescemos juntos foi desfeito e nosso pertencimento com o território já passa a não existir mais. Não existe saúde mental forte o suficiente para lidar com a dor de ser um atingido climático para a vida inteira, principalmente quando falamos de crianças, adolescentes e mulheres chefes de família.
No período das enchentes de 2024, a deputada federal Érika Hilton (Psol-SP), com articulação do meu mandato, enviou uma emenda no valor de R$ 2,2 milhões para o Rio Grande do Sul, para ser aplicada a construção de um Centro de Atenção Psicossocial (Caps) em Alvorada.
Eu também destinei R$ 1 milhão em emendas parlamentares para a Rede de Atenção Psicossocial em 2024. Porque acredito que o cuidado com a saúde mental é essencial para a manutenção da saúde e dignidade da população. Principalmente, em situações de emergência climática como o que vivemos no Rio Grande do Sul nos últimos anos.
Como garantir direitos humanos quando falamos em crise climática?
Precisamos pensar na garantia geral de direitos, que passam por saúde, educação, trabalho, assistência social, moradia, acesso à Justiça, entre outras áreas essenciais para garantir a dignidade da vida humana. Além disso, o poder público deve construir políticas de proteção, resposta humanitária, recuperação e reparação de indivíduos e comunidades atingidas, priorizando especialmente aqueles que sofrem o impacto desproporcional desses eventos em razão de sua raça, idade, etnia, condição migratória, deficiência e origem social ou renda.
