Reconhecimento, reconstrução, reformas, reassentamento e regularização. As cinco palavras resumem a pauta de luta do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) no Rio Grande do Sul desde as enchentes de 2024. Foram também elas que conduziram as reflexões dos dois dias do Seminário Crise Climática e Direitos dos Atingidos: os desafios da reconstrução com justiça socioambiental e participação popular, realizado em Porto Alegre nas últimas segunda (5) e terça-feira (6).
Promovido em parceria com a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), o encontro iniciou com a apresentação do relator especial da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), Javier Palummo. Segundo ele, dez direitos foram violados com as enchentes e existem insuficiências na reparação, mesmo depois de um ano. Durante a exposição, Palummo apresentou as 24 recomendações da OEA ao Estado brasileiro para uma recuperação sustentável, equitativa e alinhada com os direitos humanos.
Leia mais sobre a apresentação do relator especial na nossa reportagem especial: “As mudanças climáticas exigem políticas públicas baseadas nos direitos humanos”, aponta Relatório da OEA.

O debate do seminário apresentou o alerta para a ausência de políticas públicas em favor da população atingida e a necessidade de colocá-la no centro da discussão, buscando a garantia de ações efetivas e permanentes. “Como transformar a dor em políticas públicas mais resilientes?”, questionou o procurador da República Fabiano de Moraes.
Moraes é um dos subscritores, junto com a Associação Nacional dos Atingidos por Barragens (Anab), da Ação Civil Pública movida contra nove municípios do Vale do Taquari, o estado do Rio Grande do Sul e a União, que visa discutir e analisar a efetividade de políticas públicas em favor das populações atingidas pelo desastre climático de 2024.
População se sente abandonada
Ainda na tarde de segunda-feira, o seminário seguiu debatendo a realidade dos atingidos e o papel do Estado na reconstrução. As intervenções dos presentes trouxeram à tona a pauta de luta do MAB. “Vocês morariam na casa onde nós estamos morando?”, questionou Sara da Rosa, de Canoas, ao secretário para Apoio à Reconstrução do RS, Maneco Hassen.
Moradora do bairro Sarandi, em Porto Alegre, Katia Costa constatou: “A gente continua sendo atingido principalmente pela falta de informação do poder público”. O lajeadense Leopoldo do Nascimento acrescentou: “Desde setembro de 2023 já entrou água na minha casa quatro vezes e estão dizendo que a crise climática vai ser cada vez pior”.
Durante a exposição, Hassen apresentou os recursos investidos pelo governo federal no Rio Grande do Sul, que somam R$ 112 bilhões. Segundo ele, “94% de todo recurso aplicado no RS é do governo federal”. O secretário seguiu explicando que 430 mil famílias foram beneficiadas pelo Auxílio Reconstrução de R$5,1 mil e há a previsão de disponibilizar, no total, 25 mil casas.

Moradia
A questão da moradia é um dos principais pontos de luta do MAB e também foi destaque na discussão do secretário com os atingidos presentes no seminário. Na plenária, com mais de 150 pessoas, apenas duas delas já haviam sido contempladas pelo Programa Compra Assistida.
Hassen lembrou que o “presidente Lula garantiu moradia para todas as pessoas desde que atendam dois requisitos: casa condenada e renda até R$ 4,7 mil”. Entretanto, os atingidos seguiram confirmando as dificuldades para conseguir suas moradias por diversos fatores. Um dos mais alarmantes é a ausência de critérios universais para reconhecimento dos atingidos, de modo que, pela pouca transparência e subnotificação, há incerteza da presença dos nomes nas listas de cada município. Somam-se a isso as burocracias da Caixa Econômica Federal, a falta de reconhecimento da casa como destruída ou condenada e o aumento do preço dos imóveis em todo o estado.
Até agora, 1.620 moradias foram entregues no estado, o que significa 6,5% da meta total, de modo que, neste ritmo, seriam pelo menos 15 anos para chegar à meta de 25 mil casas. Durante a mesa, o MAB solicitou ao secretário Hassen atenção e celeridade ao processo, que se comprometeu em zelar especialmente pelos casos em que os atingidos não tiveram os nomes inseridos nas listas dos municípios.
Desafios para enfrentar a crise climática
O segundo dia de seminário iniciou com o debate sobre as ações necessárias frente à crise climática. Em comum acordo está a consciência de que os eventos extremos serão cada vez mais recorrentes.
A mesa contou com a participação da reitora da Ufrgs, Márcia Barbosa, que ressaltou a importância de uma articulação coletiva junto à universidade para garantir o enfrentamento. “A Ufrgs está comprometida com a questão climática, não só com a ciência, mas também conversando com as comunidades e lutando para garantir que, se daqui um tempo tiver uma nova enchente, nós vamos ter as nossas vidas garantidas.”
Barbosa ainda acrescentou a necessidade de que a organização popular assuma a “briga para que os investimentos que estão sendo enviados pelo programa federal sejam executados para atender a população de uma maneira mais ágil e correta”.
“Os mais atingidos têm raça, classe e gênero bem marcados e isso deve pautar a agenda de enfrentamento da crise climática”, alertou a professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Ufrgs, Lorena Fleury. Ela apontou a importância de considerar as populações mais fragilizadas nas ações de reparação, não só neste pós-enchente mas também em uma nova emergência.
“O desastre é vivenciado de forma bastante desigual. Os bairros mais atingidos têm mais pessoas pretas e pardas, as mulheres são mais sobrecarregadas e mais expostas à violência e o tempo de resposta a cada território é diferente. Quanto tempo demorou para tirarem a água do Menino Deus (bairro central) e do Sarandi (na periferia de Porto Alegre)?”, questionou a professora.
Ao apontar algumas ações possíveis para o enfrentamento da crise, Fleury destacou especialmente a necessidade de que sejam implantados mecanismos de governança que contemplem os atingidos. “Se não descentralizarmos, os modelos existentes vão seguir beneficiando quem está próximo do governo, e quem são? As elites”, afirmou.
Descompasso entre vida real e propaganda
Djeison Diedrich, membro da coordenação estadual do MAB, seguiu as discussões da manhã e advertiu: “Há ainda um descompasso entre a vida real dos atingidos e o que vemos divulgado, especialmente no que diz respeito à moradia”. O advogado levantou novamente uma das pautas do MAB e criticou que esteja na avaliação “dos prefeitos para definir quem é ou não atingido”.
A omissão e a desinformação por parte do Estado, já discutida no dia anterior, foi novamente pauta da discussão. Conforme Diedrich, isso não é ao acaso. “A falta de clareza dos governos tem sido usada para negar direitos e o que temos visto de propostas por parte do Estado não serve para reassentamento, para o cuidado com a comunidade”.

Mesmo na crise, é possível evitar novos desastres
Durante a tarde, Javier Palummo retomou a apresentação do relatório destacando a necessidade de pensar o direito ambiental e os direitos humanos de forma integrada. Também estiveram na mesa de encerramento do evento a procuradora da República Flavia Rigo Nobrega, a professora do Direito da Ufrgs e coordenadora do Observatório das Consequências Jurídicas das Enchentes e Inundações (OCJE), Cláudia Lima Marques, e o professor Emiliano Maldonado, também da Faculdade de Direito da Ufrgs.
Em sua exposição, Nobrega comentou sobre a necessidade de que sejam esclarecidos os papeis de cada instância do governo. “Precisamos saber o que compete à União, ao estado e aos municípios”, disse a procuradora. Segundo ela, isso ajudaria a definir responsabilidades e a garantir ações diretas em favor dos atingidos, com definições claras e comuns.
“Eu não posso permitir que num local os atingidos sejam X ou Y e em outro local seja aplicada outra visão, com critérios totalmente diferentes”, comentou Flavia, finalizando com um alerta importante: “Vamos ter eventos extremos – e teremos muitos daqui pra frente ─ mas podemos evitar novos desastres”.
A professora Lima Marques reforçou o papel da universidade para pensar soluções efetivas para os atingidos. Ela entregou uma nota técnica ao relator e mencionou que está em criação na Faculdade de Direito um novo departamento do Direito Internacional e Direitos Humanos.
Por fim, Maldonado destacou a importância das visitas in loco realizadas pela Relatoria Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Redesca) da CIDH. Foi o que que possibilitou a elaboração do relatório e apontou a violação de um conjunto de direitos que precisam ser protegidos pelo sistema judiciário e garantidos pelos agentes públicos envolvidos no processo de reparação do RS. Nesse aspecto, o advogado frisou que só é possível garantir esses direitos se for efetivada a participação popular das comunidades atingidas no processo de reconstrução.
É hora de avançar: rumo à luta!
Durante os dois dias, os participantes do seminário destacaram a necessidade de se pensar e construir a pauta e a luta em conjunto no enfrentamento de todas as questões apresentadas. Inclusive em parceria com a academia, decidindo e construindo saídas em conjunto. Uma conclusão foi unânime: a importância da organização popular para ecoar a voz dos atingidos na busca por reparação.
Atentos a isso, o MAB e o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) se reúnem com outros movimentos sociais, entre eles Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura Familiar do Brasil (Fetraf) e Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), no dia 15 de maio, em Porto Alegre, para a uma jornada de luta.
O ato terá como mote “Na luta por ambiente saudável, moradia digna e comida de verdade”. O objetivo é reivindicar a garantia dos direitos das populações atingidas, do campo à cidade, exigindo a participação direta dos atingidos para a resolução dos problemas que ainda permanecem sem solução, mesmo um ano após a enchente.
Na pauta do MAB, entre as principais solicitações estão os direitos à moradia adequada, segura e saudável; à proteção e segurança das comunidades atingidas; à segurança alimentar; ao acesso à energia elétrica e à água de boa qualidade; e à reconstrução das estruturas públicas de saúde e educação.
*Comunicação Movimento dos Atingidos por Barragens
