Com a presença de líderes como o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o mandatário chinês Xi Jinping, a celebração do Dia da Vitória em Moscou nesta quinta-feira (9) expõe uma disputa cada vez mais intensa: quem tem o direito de contar a história da Segunda Guerra Mundial. Enquanto os Estados Unidos e aliados europeus reforçam uma narrativa que centraliza o papel ocidental na derrota do nazifascismo, a Rússia, herdeira da União Soviética, reafirma sua versão dos fatos e denuncia o apagamento de sua memória coletiva.
“A Segunda Guerra Mundial continua a ser travada, ou pelo menos a sua memória”, observa o analista Marco Fernandes, diretamente de Moscou, em entrevista ao podcast de política internacional O Estrangeiro, do Brasil de Fato. “É um processo que, sobretudo os Estados Unidos, por meio de do seu grande aparato de propaganda chamado Hollywood, foi construindo ao longo das últimas década”, afrima. Para ele, filmes como O Resgate do Soldado Ryan e Dunkirk criaram uma percepção distorcida que vai sendo reforçada geração após geração.
Segundo Fernandes, essa reinterpretação histórica se manifesta também em dados concretos. Uma pesquisa do instituto britânico YouGov mostrou, por exemplo, que apenas 17% dos franceses acreditam que a União Soviética foi a principal responsável pela derrota nazista, número que era de 57% em 1945. Nos EUA, 59% consideram os próprios norte-americanos como os maiores responsáveis pela vitória. Ao se colocar os EUA como vitoriosos, “[o presidente Donald] Trump está ressonando o que é um senso comum estadunidense”, conclui.
A realidade histórica, no entanto, aponta que a URSS perdeu cerca de 25 milhões de pessoas no conflito e foi essencial para o colapso militar da Alemanha nazista no front oriental. O analista explica que, ao diminuir o papel soviético, reabilita-se inclusive figuras ligadas ao nazismo. “Existem mais de 400 monumentos, nomes de rua, placas comemorativas em homenagem a nazistas famosos na Ucrânia”, exemplifica.
Sul Global presente, Ocidente ausente
A celebração deste ano em Moscou ocorre em meio a uma guerra em curso entre Rússia e Ucrânia e ao acirramento das tensões entre potências globais. A ausência de delegações dos EUA e da Europa Ocidental, por outro lado, é contraposta pela presença de líderes do Sul Global, como Lula e Xi Jinping.
Para o correspondente do Brasil de Fato na Rússia, Serguei Monin, há um grande contraste. Enquanto, de um lado, há o boicote ocidental, do outro, há a presença de países como Brasil, Venezuela, Cuba, Egito e nações da Ásia Central nas celebrações do Dia da Vitória. “Essa maciça presença do Sul Global e, principalmente a do presidente Lula, é encarada como uma grata surpresa, especialmente pela liderança no Brics. É um nome de peso junto ao Xi Jinping”, avalia.
Monin vê a ida de Lula à Rússia, seguida de uma visita à China, como uma tentativa de reposicionar o Brasil como ator diplomático relevante em um mundo multipolar. Segundo ele, há expectativa de acordos bilaterais em ciência, energia e tecnologia, além de articulações para uma possível mediação do Brasil na guerra da Ucrânia.
O evento do 9 de Maio é mais do que uma cerimônia oficial. Trata-se de um instrumento de política externa e identidade nacional para a Rússia, e, por extensão, de seus aliados. Desde o golpe de 2014 na Ucrânia, que resultou na ascensão de forças nacionalistas e pró-Ocidente, o país se afastou das tradições comuns ao passado soviético, adotando inclusive o dia 8 de maio como data oficial para lembrar o fim da guerra, em alinhamento com a Europa e os EUA.
O podcast O Estrangeiro vai ao ar toda quarta-feira às 11 horas no Spotify e YouTube.