Na semana que marca um ano da tragédia que atingiu o Rio Grande do Sul, o porto-alegrense Jorge Furtado estreia no cinema nacional com seu mais recente filme, Virginia e Adelaide, que narra um encontro fundamental da psicanálise brasileira.
O longa, cujo elenco conta com Sophie Charlotte e Gabriela Corrêa, é baseado em um fato real: a relação entre a alemã-brasileira Adelaide Koch, a primeira psicanalista a chegar na América do Sul, na década de 1930, e Virginia Bicudo, marco da sociologia no Brasil, principalmente pelo avanço nos debates sobre o racismo no país.
“O filme é quase uma sessão de análise também, porque a gente está ouvindo essa conversa”, descreve o diretor sobre a obra que parte do momento em que Bicudo vai ao encontro de Kock para realizar sessões de análise e estudar como o racismo afeta sua vida. Mulher negra, ela chegou a ser rejeitada no curso de medicina por sua etnia.
Furtado é conhecido pelos filmes O Homem que Copiava, Ilha das Flores e Saneamento Básico. Em Virginia e Adelaide, ele é roteirista do filme e divide a direção com Yasmin Thayná.
Segundo o cineasta, a estreia do filme na semana em que se completa um ano da enchente foi coincidência, mas a decisão de ter rodado o filme em Porto Alegre, não. Intencionalmente, a obra elegeu a locação como uma forma de “resistência”.
“Continuar trabalhando aqui, com essa decisão ‘vamos fazer filme, não vamos parar, não vamos parar, não vamos parar’ foi também um ato de resistência. Nós não vamos deixar que essa tragédia natural, nem tão natural assim, deixe que a gente pare de fazer filmes aqui.”
Confira a entrevista na íntegra
O que te inspirou a contar essa história?
O filme é quase uma sessão de análise também, porque a gente está ouvindo essa conversa. A psicanálise é muito o lugar da escuta e hoje todo mundo fala pra burro, fala nas redes sociais, mas ninguém escuta as pessoas, não leem as páginas dos outros, não leem os textos.
Então, no momento em que essas duas pessoas se encontram e se escutam, elas criam algo. Isso é importante, ainda mais naquele contexto, porque o nazismo, o fascismo, o autoritarismo separa as pessoas. Ele planta ódio para que as pessoas se dividam e eles governem.
Então quando o Brasil foi entregue a um grupo de golpistas e ladrões, em 2018, eu fiquei tentando entender como é que tinha acontecido isso, como é que nós entregamos democraticamente o governo do país a uma pessoa a quem não entregaria uma tesoura com ponta.
É uma pessoa sem a menor qualificação para ser síndico de um prédio, de um pequeno. E virou o presidente da República cercado de pessoas tão incompetentes quanto ele.
Como isso aconteceu? E aí me lembrei da Alemanha, onde aconteceu a mesma coisa, né? Na Alemanha é um país super civilizado que elegeu uma barbárie, escolheu [o político nazista Adolf] Hitler.
Então fui estudar o nazismo também e vi que a história da Adelaide, a fuga dela, ela cruzou o Atlântico quase que na contramão da [advogada alemã-brasileira] Olga Benário, porque ela veio para cá enquanto a Olga é mandada pelo Getúlio [Vargas, ex-presidente do Brasil] para morrer no campo de concentração. Getúlio deu o golpe de Estado no mês que as duas se conheceram.
O Brasil virou uma ditadura, flertando com o fascismo. Então Adelaide, com as suas filhas e seu marido, chega a São São Paulo com a suástica voando pelo céu num zeppelin. Era um momento de muita tensão.
O filme tem um tom documental mostrando o impacto do nazismo na Alemanha e também no Brasil. Você entende que seu filme dialoga com Ainda Estou Aqui, por exemplo?
Ainda Estou Aqui é um filme importantíssimo porque ele não só é muito bom, muito bom em todos os sentidos, bem realizado, bem interpretado, bem dirigido, mas ele é extremamente oportuno, porque ele fala sobre os horrores das ditaduras, para quem achava que isso era uma coisa política, de esquerda, direita, ele furou uma bolha.
Ele fala o seguinte, “olha, numa ditadura, a polícia entra na tua casa no meio da tarde, leva teu pai, teu marido, teu filhos, e tu nunca mais ouvi falar deles, e tu não tem para quem se queixar.”
Isso é ditadura, qualquer ditadura é assim. Então isso alertou as pessoas para um grande risco que nós corremos e ainda corremos com pessoas que têm tendências autoritárias e golpistas.
O filme estreia justamente na semana que completa um ano da enchente em Porto Alegre, isso foi pensando?
Não, foi uma coincidência a estreia, mas não a realização. Porque a gente passou uma tragédia terrível. Todo mundo já falou, já filmou, já contou, mas, eu dessa janela aqui, vi chover durante 19 dias forte, eu filmei inclusive, foram 19 dias de chuva muito forte.
Todos nós temos amigos, quem não perdeu as coisas, tem um amigo, tem parente, eu tenho vários amigos, colegas, que perderam tudo. A casa se foi em dez minutos, eles perderam tudo o que tinham construído, materialmente, na vida inteira.
Então continuar trabalhando aqui, com essa decisão “vamos fazer filme, não vamos parar, não vamos parar, não vamos parar” foi também um ato de resistência. Nós não vamos deixar que essa tragédia natural, nem tão natural assim, deixe que a gente pare de fazer filmes aqui.
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