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A extensão da Lei Maria da Penha para a comunidade LGBTQIAPNb+: os limites de uma conquista jurídica

Neste ano, o STF reconheceu a urgência de garantir proteção legal a todas as pessoas vítimas de violência doméstica

Por Vitória de Souza Fernandes* e Xaman Minillo**

Somente nos primeiros três meses de 2025, a Paraíba registrou 12 feminicídios, uma média de uma mulher assassinada a cada 7,5 dias, segundo a Secretaria de Estado de Segurança e Defesa Social (SESDS). Desses casos, 75% ocorreram dentro da própria casa das vítimas, espaço que deveria ser de proteção, mas que em diversas ocasiões se revela o mais perigoso para mulheres em situação de violência.

Esse cenário alarmante na Paraíba reflete um problema nacional que a Lei Maria da Penha, sancionada em 2006, busca combater ao tipificar e punir as diversas formas de violência doméstica: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral contra mulheres.

Embora a lei seja considerada uma das mais eficazes do mundo, a abrangência da proteção dessa lei tem sido questionada, tendo em vista a necessidade de ampliação para outras formações familiares para além das normas hétero e cis. Isso pois, em uma seara onde faltam dados consolidados e abunda subnotificação, o Brasil lidera o ranking mundial de mortes violentas da população LGBTQIAPNb+.

Em 2024, por exemplo, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra), 117 travestis e mulheres trans/transexuais foram assassinadas. E, conforme o Grupo Gay da Bahia (GGB), 273 pessoas LGBT+ foram vítimas de homicídio.

Foi neste triste contexto e a partir dos debates sobre a ampliação da Lei Maria da Penha que, em 21 de fevereiro de 2025, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a urgência de garantir proteção legal a todas as pessoas vítimas de violência doméstica no contexto familiar. Durante a plenária, o relator, ministro Alexandre de Moraes, salientou as falhas do Poder Legislativo no que diz respeito à proteção de direitos e liberdades de pessoas homoafetivas e transgênero.

De acordo com Moraes, a Lei Maria da Penha precisa alcançar travestis e mulheres transgênero, uma vez que o sexo biológico não determina a identidade de gênero de uma pessoa. Agora, a lei também deve abranger casais gays compostos por dois homens “se estiverem presentes fatores contextuais que insiram o homem vítima da violência na posição de subalternidade dentro da relação”.

A Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas (ABRAFH) foi fundamental no impulsionamento desse debate ao argumentar que a antiga lei era insuficiente e não certificava a proteção contra violência doméstica em todos os tipos de organizações familiares.

Segundo a ABRAFH, a conjuntura se caracterizava como uma omissão inconstitucional, tendo em vista que a Carta Magna determina a proteção de todos os tipos de famílias contra esse tipo de violência, e não apenas em relações heteroafetivas.

O STF analisou a omissão do Poder Legislativo quanto à causa e, por unanimidade, foi decidido que existia uma falha legislativa no Congresso Nacional quanto a casais homoafetivos e pessoas transgênero. Portanto, a Lei Maria da Penha se estenderá a esse grupo de pessoas enquanto não houver uma legislação especificamente adequada e direcionada a elas.

As mudanças no escopo de aplicação da lei objetivam garantir segurança a grupos minoritários marginalizados, como gays, mulheres trans e travestis. Algo de extrema importância e urgência considerando os indicadores de violência contra essas populações no Brasil. O avanço desse debate até a mais alta instância do Poder Judiciário no Brasil é um marco importante para a comunidade LGBTQIAPNb+ no país. No entanto, o avanço jurídico também escancara a negligência estatal. Ele revela que há uma lacuna e, para remediá-la, a interpretação de uma lei pré-existente foi expandida para alcançar essas pessoas. O Legislativo não contribuiu para mudança alguma.

Além disso, considerando as vivências de cidadania à qual pessoas LGBTQIAPNb+ têm acesso na prática, resta o questionamento: vai haver cumprimento efetivo da Lei Maria da Penha em suas novas instâncias? Isso pois, embora a legislação vigente na Constituição Federal já assegure o direito à vida a todos os cidadãos, persiste a injusta e brutal realidade de feminicídios contra pessoas trans e assassinatos violentos de gays, lésbicas e bissexuais, que acontecem cotidianamente à revelia das instituições que deveriam garantir sua segurança. O conservadorismo presente nas instituições brasileiras permite postergar o enfrentamento desse terror pelos cidadãos LGBTQIAPNb+.

Para que a expansão da Lei Maria da Penha seja, de fato, uma vitória da comunidade LGBTQIAPNb+, é necessário que as instâncias responsáveis pela sua aplicação sejam devidamente capacitadas para tal função. A extrema violência que é direcionada contra esse grupo de pessoas não advém apenas do ambiente doméstico. A própria polícia é uma das instituições que contribui significativamente para a opressão dos grupos que escapam à heteronormatividade na sociedade brasileira.

Sendo assim, é crucial que haja preparo para a aplicação efetiva dessa extensão da lei. Isso demanda mudanças estruturais, considerando o conservadorismo que já limita a garantia dos direitos das mulheres cis em relacionamentos heterosexuais quanto à aplicação da Lei Maria da Penha.

Conhecimentos básicos sobre identidade de gênero e sexualidade são cruciais para um atendimento humanizado para vítimas de abusos e agressões, especialmente considerando que essas pessoas se encontram em situação de vulnerabilidade social e já sofrem diferentes tipos de agressões cotidianamente.

Além disso, é preciso que haja dados sobre a violência doméstica enfrentada por pessoas LGBTQIAPNb+. Sabemos que o estado da Paraíba registra uma média de quatro feminicídios por mês em 2025, mas não há dados oficiais sobre violência contra mulheres trans e casais homoafetivos no estado. Uma ausência que revela outro elemento da negligência estatal que precisa ser sanado: a invisibilidade estatística que precede a invisibilidade política.

A ampliação da Lei Maria da Penha é um avanço, e merece ser comemorada. Mas para além de seu escopo, queremos que a lei tenha aplicabilidade efetiva. Portanto, a luta precisa ser contínua.

*Vitória de Souza Fernandes é graduada em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Paraíba. Atuou como colunista no Observatório de Internacionalização Descentralizada em Foco (IDeF). Atualmente, é membro do projeto de extensão Diálogo GENERI – Diálogo de Gênero nas Relações Internacionais e realiza pesquisa acerca dos problemas de internacionalização de políticas públicas no Grupo de Pesquisa em Internacionalização de Políticas Públicas e Cooperação Internacional (GIPCI).

**Xaman Minillo é docente e coordenadora do curso de graduação em Relações Internacionais da UFPB, membro do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e Relações Internacionais (PPGCPRI /UFPB). Trabalha com temas de políticas sexuais e de gênero, estudos queer e decoloniais, feminismos e ativismos LGBTQ+ africanos e indígenas. Coordena o grupo de estudos de Políticas Sexuais Internacionais – PoliSexI, e é responsável pelo projeto de extensão Diálogo GENERI – Diálogo de Gênero nas Relações Internacionais. Contribui para a promoção da igualdade de gênero na comunidade acadêmica em suas pesquisas, aulas, e como membro do grupo MulheRIs e co-coordenadora da Rede Latino-Americana MulheRIs+MujeRIs.

***Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil de Fato.

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