Insone em seu palácio em um reino muito distante porém assustadoramente próximo, Brucutu 1º perambula à procura de leite condensado e rumina sobre inimigos ─ “Comunas de merda. A gente deveria ter passado todos na faca”. Faz promessa para seu santo de devoção, São Tiburroçá, sofre com sua paranoia de perseguição e recorda sua viagem a Davos, ao lado do ministro do Ecocídio, onde foi oferecer seu país, o Bananão, aos apetites internacionais. Lembranças ilustradas com um espoucar incontrolável e estrepitoso de flatulências.
Enquanto vaga por um sem fim de aposentos, bufando e praguejando, uma presença ao seu lado agiganta-se, tornando-se cada vez mais ameaçadora, absorvendo-o e devorando-o pouco e pouco. É um rei e uma realidade que, aos brasileiros, parece bastante familiar.
Brucutu Rei é o mais novo romance na praça de Ernani Ssó e leva como subtítulo Relato delirante da noite de insônia do rei do Bananão, perdido em seu palácio (editora Caos & Letras). Sua noite de autógrafos será nesta quarta-feira (14), às 19h, na Casa Alice (Rua Olavo Bilac, 188), em Porto Alegre.

Com 18 livros publicados entre romances, novelas, volumes de contos, literatura infanto-juvenil e não-ficção, além de tradutor de Dom Quixote e outras obras, Ernani Ssó moldou seu asqueroso monarca buscando ajuda em grandes referências da literatura do grotesco, como Ubu Rei, de Alfred Jarry (1873-1907), e Pantagruel, de François Rabelais (1483-1553), além de catar contribuições nas crônicas do brasileiro Ivan Lessa e no aluvião de absurdos diários documentado pelo jornalismo pátrio.
Nas próximas linhas, ele narra como veio à luz Brucutu 1º, filho literário e hediondo nascido durante a pandemia, e explica coisas como a localização no mapa desse país amaldiçoado pelos deuses chamado Bananão. Para quem se horroriza com personagem tão asqueroso, indaga: “Como encarar uma realidade burlesca, criminosa, grosseira, escatológica? Com timidez? Com delicadeza? Com o nariz tapado e com luvas?” Então, como era preciso alguém fazer o serviço sujo e ele foi lá e fez.
Brasil De Fato RS ─ A primeira frase do livro, uma fala do personagem título, é “Broxei, taoquei?” Sinto que conheço esse palavreado. Ou será impressão minha?
Ernani Ssó ─ É impressão. Você ouviu o eco de “Sou imbroxável, taoquei?”. Mas é isso, numa ficção a gente investiga, entre outras coisas, o lado negro da força. Ou da falta de força.
O romance é a regurgitação do noticiário tóxico, filtrado pela imaginação, que consumi por décadas
Ubu Rei, de Alfred Jarry, foi, por certo, uma inspiração. Mas é inegável o aporte, digamos, terceiro-mundista do personagem.
Não é um bom sinal, pra nossa fé no ser humano, que tantos ditadores ou candidatos a ditadores em toda parte se pareçam com Ubu, que foi inspirado por quem? Por um professor de Jarry, na adolescência. Um simples professor.
Quanto aos ditadores, só varia o grau de brutalidade, estupidez e ridículo. Mas com certeza o Brucutu tem tiques tropicais inconfundíveis. Sem falar que o cenário em que ele se move é o das repúblicas de bananas, ou, se atualizarmos a expressão, repúblicas de outras pechinchas, como soja, mineração…

Além do Ubu, quem mais ajudou a construir o perfil do rei Brucutu?
Tem um toque de Pantagruel, do grande Rabelais, no humor e exageros desmedidos de fábulas. Mas não dá pra negar as musas brasucas, como Bolsonaro, milicos de todas as armas e civis de pelagem patriotária variada. Somando tudo, o Brucutu é uma almôndega feita com carnes variadas, como diria Nabokov, e suspeitas, como digo eu.
Agora, o que mais me preocupava era que o personagem não fosse apenas a sátira de um ser monstruoso, um tanto folclórico, vivendo numa realidade nebulosa de contos de fadas ou terror, como o próprio Ubu. Eu queria que através dele, da sua ação, dos seus delírios, se entrevisse o país que o criou e aplaudiu contra todas as provas de vileza e corrupção. De uma certa forma, o romance é a regurgitação do noticiário tóxico, filtrado pela imaginação, que consumi por décadas.
Brucutu Rei é uma comédia. A resposta dos humoristas é sempre na bucha
Por falar nisso, Brucutu Rei nasceu a fórceps ou foi parto natural?
Em dezembro de 2020, me apareceu um sósia do Ubu, com a frase de abertura e a vaga notícia de que se perderia pelos corredores do palácio e em sua própria mente. Escrevi duas páginas pra ver no que dava, mas desisti. Era uma bruta encrenca – eu me sentia sem lenço, sem documentos e sem bússola. Meses depois a (tradutora) Heloisa Jahn leu essas páginas e me disse que eu devia continuar, que era uma boa, e mais tarde até tentou me arrumar editor. Com o empurrão da Helô, e como eu estava preso pela pandemia sem grande coisa pra fazer, tratei de seguir os desatinos do Brucutu. Lá pelas tantas, as peças do quebra-cabeça começaram a se encaixar e pude ir até o amargo e grotesco fim. Quer dizer, foi difícil, mas foi parto natural. A fórceps foi a edição, diante da indiferença das grandes editoras. Não quero pensar que tenha sido covardia.
Por falar em pandemia, ela influiu no romance?
Bastante. Há coisas bem diretas, como os capítulos com o enxame de vírus do tamanho de periquitos. Mas, mais interessante é o Brucutu confinado no palácio, com o povo em volta batendo panelas. Não sei se isso teria me ocorrido sem o sufoco daqueles dias.
Na verdade, o romance foi escrito durante um cerco, na linha de frente. Um cerco não só do vírus, bem entendido. Não é perigoso escrever assim, sem distanciamento?
Com certeza, é perigoso, muito perigoso. Mas veja, o Brucutu Rei é uma comédia. A resposta dos humoristas é sempre na bucha. Humorista nenhum vai viver dez anos numa caverna, no alto da montanha, pra fazer uma piada razoável. Depois, há os antídotos de sempre: revisão implacável e a lucidez dos amigos.
Por falar nisso, o escritor Mário Goulart já disse que o Brucutu Rei é violentamente bem-humorado.
Foi meu modo de não chorar durante o cerco.
A ação do romance se passa em um país denominado Bananão. Procurei no Atlas e não o localizei. Onde fica mesmo o Bananão?
Entre Macondo e a ilha do doutor Moreau. Consulte o geógrafo Ivan Lessa. Ele tem boas informações sobre o Bananão.
Sempre tive curiosidade sobre como um defensor da tortura se comportaria no papel de torturado
O Brucutu tem um encontro desagradável com São Tiburroçá, que é um santo, porém diabólico. É seu ídolo e se assemelha muito ao mais célebre dos feitores e malfeitores dos porões de uma ditadura famosa num país muito parecido com o Bananão.
Sempre tive curiosidade sobre como um defensor da tortura se comportaria no papel de torturado. Como essa curiosidade nunca será satisfeita ─ nem quero que seja, na verdade ─, me dediquei a um pequeno exercício de humor negro.
O Brucutu Rei… espera, vamos dar o nome completo: o Brucutu Rei – Relato delirante da noite de insônia do rei do Bananão, perdido em seu palácio é desabusado, tanto na linguagem como no enredo. Isso não me pareceu um cálculo seu, mas geração espontânea. É vero?
Foi geração espontânea, com certeza. Tenho um modo, digamos, irreverente de ver as coisas e naturalmente nunca pensei em chocar ninguém ─ aliás, isso me parece uma ambição rasteira e inútil. Épater les bourgeois morreu com os burgueses do século 19, ninguém mais se choca com nada, fora os carolas de sempre, que são chocáveis profissionais. A coisa é mais simples: como encarar uma realidade burlesca, criminosa, grosseira, escatológica? Com timidez? Com delicadeza? Com o nariz tapado e com luvas?
Falar de mau gosto, nesse caso, seria como falar da crueldade de Curzio Malaparte, não? Ele é cruel porque relata as crueldades da Segunda Grande Guerra?
Bem lembrado.
Nos agradecimentos, você menciona um punhado de chargistas e diz que hoje, no Brasil, a grande arte é feita por eles. Isso não é meio exagerado?
Claro, mas vale como provocação, não? Cada um escreve e desenha sobre o que quer ou pode. Não há como legislar sobre isso. Agora, eu estranho que num país tão grande, com tantos escritores, poucos, muito poucos topem fazer o serviço sujo. Já os chargistas encaram a encrenca todo dia. Mais, muitas vezes nos dando duas ou três obras-primas por semana. Não é de dar inveja? Daí fui tentado pelo diabo: trate de dar com palavras uma imagem que possa ilustrar nossas mazelas e ficar na memória.
Conseguiu?
Talvez o diabo saiba. Eu só sei que alguém precisava fazer o serviço sujo. Fui lá e fiz. Não tenho orgulho disso. Mas passei a dormir melhor.
