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Leonardo Melgarejo

A coerência ilumina

Engenheiro Agronômo, MsC em Economia Rural, Dr. em Engenharia de Produção. Extensionista rural aposentado, fotógrafo. Colaborador da Campanha Perma...
Sua saída de cena, assim como a do Papa Francisco, abriu um vazio que não será preenchido com facilidade

Pepe Mujica é com certeza o grande tema desta semana.

Muito se escreveu e ainda está por ser escrito sobre aquele homem. Afinal, por seu comportamento em vida, ele conquistou espaço de relevo entre os maiores e melhores representantes de nossa espécie. Sua saída de cena, assim como a do Papa Francisco, abriu um vazio que não será preenchido com facilidade.

De um lado, está nosso medo de um futuro que se anuncia horroroso e a natural desconfiança de políticos e projetos de desenvolvimento apresentados como mercadorias ao sabor do cliente.

De outro, estão os candidatos.

Independente de seus méritos, os mais novos entre eles vão precisar de tempo para se expor, sair da toca e permitir que nós comparemos o histórico de suas atitudes ao que eventualmente se proponham a fazer, no presente.

E os outros, os já bem conhecidos, vão precisar demonstrar renovada e verdadeira disposição para evitar os arranjos e acordos que acabam privilegiando aqueles grupos que estavam sendo enfrentados por Pepe Mujica e Francisco.

O fato é que as novas lideranças populares, além de confrontadas em prejuízo, com aqueles produtos do marketing veiculado nas grandes mídias, também serão cobradas por demonstrações de coerência que demarque consistência entre os anúncios de intenções e a efetividade de gestos (possivelmente tímidos) orientados para mudanças que, no interesse da humanidade, precisam ser radicais.

Não será fácil. E neste próximo ano o futuro se decidirá com uma eleição confusa onde influenciadores digitais estarão a serviço de enganadores que se apresentarão sem passado, enquanto que, para os nossos, a coerência se apresentará como um conceito chave.

Seguindo neste rumo, e ainda que me restringindo à citação de algumas poucas frases de Pepe Mujica, parece claro que o futuro vai depender de nosso entendimento e compromisso com o conteúdo de suas lições (e de sua  associação com Francisco).

Aproveito para isso o registro de um acontecimento destes últimos dias, onde se faz presente uma característica fundamental de Mujica e Francisco. A coerência. Acredito que naquele exemplo, por seu conteúdo, podemos encontrar caminho para superação de boa parte das ameaças preparadas pelos golpistas que aí estão, contaminando os poderes da república.

Esta semana, em São Paulo, de 8 a 11 de maio, ocorreu a Vª Feira Nacional de Reforma Agrária.

E aquela combinação de festa com ato político evidenciou algo que o MST nos alerta há mais de 40 anos, e que o Lula tem repetido vez por outra: o povo, com acesso a oportunidades, constrói soluções para os problemas deste pais.

Até por saber que todas as regiões desenvolvidas do planeta, em algum momento de sua história, fizeram a reforma agrária que as colocou naquele patamar, o próprio Papa Francisco, em seus chamados pela reconstrução amorosa da solidariedade já afirmava que aos pobres cabe lutar contra (e não apenas padecer das) injustiças.

Ele enfatizava a busca de ampliação nas oportunidades de acesso a Terra, Teto e Trabalho, como um dever das organizações sociais e uma condição para a harmonia na casa comum que, por isso, precisaria ser apoiada por todas e todos, contra a ganância ecocida de quem quer que seja. Nas palavras de Francisco: “ … não pode haver terra, não pode haver teto, não pode haver trabalho se não temos paz e se destruímos o planeta” .

E o Pepe Mujica, ateu convicto que não acreditava na vida eterna nem na possibilidade de conquista – em vida – de direito a lugar – pós vida –  em algum paraíso extra terrestre, e que literalmente comeu do pão que o diabo amassou, por sua consciência conduziu a si mesmo, ao longo de 89 anos, e com maior radicalidade e compromisso do que poderia ser esperado de um santo, pelos caminhos de Francisco.

Pepe afirmava que para sermos felizes, precisamos da vida dos outros e que as conexões ali exigidas demandam coerência entre o que se pensa e o que se faz, porque as pessoas que não agirem de acordo com o que pensam, acabarão falseando a si mesmas, e pensarão de acordo com a forma em que vivem. Se tornam consumidores alienados em relação a suas responsabilidades com a vida.

E assim, voltamos à experiencia do MST. Ali se percebe, por outros caminhos,  a concretização daqueles ensinamentos: a ação solidaria amplia a conscientização do valor de cada um, na teia da vida que envolve a todos.

E aí está uma das evidências que a Feira Nacional da Reforma Agrária nos oferece: pessoas excluídas das oportunidades de acesso a terra, teto e trabalho, saindo de barracas de lona preta para ocupações de áreas degradadas pela sanha de um modelo insustentável de agronegócio ecocida, produzem vida.

Os números neste caso foram impressionantes: 180 cooperativas, 580 mil kg de produto limpos sem agrotóxicos, 40 mil kg de doações para pessoas necessitadas, 35 oficinas e seminários,  300 mil frequentadores entre outros elementos demonstrativos de que é possível gerar desenvolvimento transformador das relações de mercado, e distribuir riquezas, sem romper com o delicado metabolismo ecossistêmico da vida na terra.

Destaque-se que embora aquela seja a maior, são muitas as feiras e os exemplos concretos desta realidade defendida por Mujica, Francisco e milhões de outras pessoas compromissadas com aquela verdade simples: Nas palavras de Pepe Mujica, que passou anos na solitária e precisou beber urina para não morrer de sede, a luta é uma condição permanente…“ derrotados são aqueles que param de lutar. E parar de lutar é parar de sonhar.” Afinal, “O impossível custa um pouco mais, e derrotados são só aqueles que baixam os braços e se rendem. A vida pode te dar mil tropeçadas em todas as áreas: no amor, no trabalho, na aventura do que você está pensando, nos sonhos que você pensa em concretizar. Mas uma e mil vezes você ganha forças para se levantar e recomeçar, porque o importante é o caminho. …..(afinal)…. a vida não é só receber; é acima de tudo dar algo do que temos, e não importa o quão ferrado você esteja, você sempre tem algo para dar aos outros.”

E Mujica fez muito por isso. Um dos artífices mais entusiastas do processo de integração dos países da América Latina, do Mercosul, da Unasul e da Celac, Pepe foi referido por Lula como sendo “a pessoa mais extraordinária”, entre os presidentes com quem conviveu.

Depois disso, o que restaria a dizer, sobre aquela pessoa?

Como na música: a lição sabemos de cor. Só nos resta entender. E agir de acordo.

Documentários disponíveis para assistir: 1) “Os Sonhos de Pepe” (2024): Um documentário que explora os ideais e a filosofia de Pepe Mujica, com foco na crise climática e suas visões sobre o futuro da América Latina. Disponível na Globoplay e no Prime Video e 2)”El Pepe, uma Vida Suprema” (2018): Um documentário que oferece uma visão íntima e reflexiva sobre a vida de Mujica, incluindo suas experiências na prisão e suas lições aprendidas. Disponível na Netflix.

Música: Sol da primavera, de Beto Guedes.

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