Victoria Mello Fernandes*
Neste 18 de maio, Dia Nacional da Luta Antimanicomial, reafirmamos o compromisso ético-político com a garantia dos direitos das pessoas com transtornos mentais ou deficiência biopsicossocial. Apesar de a legislação brasileira reconhecer a necessidade de substituir o modelo asilar por cuidados em liberdade, a realidade ainda é marcada por práticas de exclusão, violência e encarceramento de corpos que a sociedade insiste em segregar nos mais diversos espaços.
Nesse contexto, a Resolução nº 487/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) representa um avanço significativo no enfrentamento da permanência da internação compulsória para cumprimento de medidas de segurança, pelo sistema de justiça. Resultado de um longo processo de articulação entre movimentos sociais, entidades de defesa dos direitos humanos, pesquisadores e diversos setores da sociedade civil, essa normativa estabelece diretrizes para o encerramento das internações judiciais por tempo indeterminado, propondo alternativas fundamentadas no cuidado em liberdade e na promoção da dignidade humana. Trata-se de um importante passo em direção ao cumprimento da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e da Lei nº 10.216/2001.
A política antimanicomial, embora consolidada em marcos normativos relevantes, tem sido implementada de maneira desigual em diferentes regiões do país, dependendo da atuação dos tribunais e das secretarias estaduais de saúde. Sua trajetória está diretamente relacionada a pressões internas e externas, que se intensificaram especialmente após a condenação do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em razão das violações cometidas no caso de Damião Ximenes Lopes, em uma clínica psiquiátrica no Ceará.
Apesar dos avanços, a Lei nº 10.216/2001 não alcançou, de forma efetiva, os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTPs), em grande parte devido a disputas e entraves de ordem política, jurídica e médico-psiquiátrica. Nesse sentido, a Resolução nº 487 pode ser compreendida como resultado de uma construção coletiva e plural, consolidada ao longo de décadas, que busca enfrentar essas lacunas históricas e propor um novo paradigma de cuidado, sustentado em princípios de liberdade, vínculo e inclusão.
Ainda, é fundamental reconhecer que a resistência às mudanças no campo da saúde mental ainda persiste. O discurso que sustenta a lógica asilar permanece presente tanto no imaginário social quanto em práticas institucionais. As transformações propostas enfrentam inúmeros obstáculos, e, em diversos estados — incluindo o Rio Grande do Sul —, observam-se permanências nos modos de funcionamento dos espaços-tempo de internação, a proliferação de comunidades terapêuticas, sugestões de “alternativas” asilares, entre outros. Desde a última interdição ocorrida em 2023, impulsionada pela Resolução nº 487 do CNJ, iniciou-se um processo de desinternação no RS que, embora marcado por dificuldades, busca romper com essas lógicas asilares e restabelecer vínculos sociais nos territórios. A construção de redes de cuidado territorializadas, que considerem a singularidade de cada trajetória e respeitem a autonomia dos sujeitos, demanda o protagonismo das políticas públicas de saúde mental e o fortalecimento efetivo da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).
A Política Antimanicomial, portanto, busca justiça social. Não se trata apenas de fechar instituições, mas de transformar a forma como a sociedade lida com a diferença, o sofrimento e a “loucura”. Trata-se de recusar o silenciamento e a exclusão como respostas ao sofrimento, à diferença. Defender os direitos dos sujeitos, no contexto das instituições de privação de liberdade exige ir além da simples enunciação de garantias universais. É necessário tensionar os limites do próprio conceito de humanidade sobre o qual esses direitos se assentam. A condição do “inimputável” revela as fronteiras da cidadania e da subjetividade jurídica: o sujeito é simultaneamente incluído e excluído, responsabilizado pela segregação e destituído de agência sob a justificativa da tutela “terapêutica”. Esse paradoxo revela que, sob o manto da proteção, se opera uma forma de despossessão que legitima práticas de contenção e silenciamento.
Os direitos humanos, quando agenciados nesses contextos, precisam ser entendidos não apenas enquanto um conjunto de normas, mas como um campo de disputa por reconhecimento e por reconfiguração dos próprios parâmetros do que é uma vida digna. Essa disputa é política, pois desafia as instituições que classificam, controlam e segregam; é ética, pois exige o reconhecimento de sujeitos historicamente marginalizados a partir do silenciamento, da negação do desejo e da dignidade. As disputas, nesse sentido, não se limitam à reivindicação do que já está garantido em papel, mas aponta para a necessidade de uma reorientação dos sentidos de justiça e de humanidade, a partir de um espaço de produção e afirmação da vida.
*Victoria Mello Fernandes é Integrante do Fórum Justiça, entidade conselheira de direitos humanos CEDH-RS. Socióloga e pesquisadora de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.