Depois de “quatro dias de batalha”, como definiu um morador, a favela do Moinho amanheceu sem invasão da Polícia Militar (PM) e com um ar de “alívio ainda desconfiado” nesta sexta-feira (16).
No dia anterior, os residentes da última favela do Centro da capital paulista, que lutam contra um processo de remoção marcado pela violência policial e a coação da gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos), arrancaram um acordo dos governos estadual e federal que trouxe uma reviravolta, atendendo uma série de condicionantes da população para sair do terreno. Entre elas, que as novas moradias sejam inteiramente subsidiadas pelo Estado.
Nesta sexta-feira (16) a PM segue na região com viaturas estacionadas nas esquinas, mas fora da favela. Muitos moradores estão ainda com feridas no corpo causadas por cassetetes, tiros de bala de borracha e inalação de gás. Ainda assim, relatam ao Brasil de Fato que a sensação é de vitória por enquanto. Pelo Whatsapp, discutem um dia para o churrasco da celebração.
“A PM está aqui, mas distante, não está mais dentro da favela ou em cima do viaduto. Está mais tranquilo. Só tem um caminhão da CDHU [Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano] para fazer uma mudança de um pessoal”, relata Gabriela Fernanda, moradora do Moinho. “Mas a gente não pode vacilar né? A polícia pode a qualquer momento arrumar uma desculpa para invadir a favela de novo”, pondera.
Funcionários da Secretaria de Habitação do governo estadual estão no Moinho nesta sexta, mas para retirar os entulhos das demolições de casas feitas por eles ao longo da semana.
A derrubada das habitações pela CDHU começou na última segunda-feira (12), descumprindo um acordo feito com a associação de moradores e colocando em risco a estrutura das casas vizinhas. Foi a repressão policial aos protestos contra as demolições que escalou o conflito e cuja repercussão nacional pressionou o governo federal – proprietário do terreno – a mudar de posição sobre como estava se dando a remoção do Moinho.
O novo acordo
Anunciado na última quinta-feira (15), o novo acordo entre os governos estadual e federal prevê um subsídio de R$ 250 mil por família para a aquisição de uma moradia pronta ou em obra da CDHU. Desta verba, R$ 180 mil será recurso federal, do Minha Casa, Minha Vida, e R$ 70 mil estadual, do programa Casa Paulista. O benefício vale para famílias que tenham uma renda mensal de até R$ 4,7 mil. Para as que terão de esperar o novo imóvel ficar pronto, o auxílio aluguel será de R$ 1.200.
O fim da repressão policial, a gratuidade das casas e a interrupção das demolições até que a última pessoa saia da favela são algumas das reivindicações da comunidade com as quais as instâncias governamentais se comprometeram. O novo acordo, no entanto, ainda não está no papel. A previsão é que uma portaria com os seus detalhes seja publicada em até três semanas.
“Estamos muito felizes, foi muita luta. Só quem viveu, sabe. Foi com nosso sangue que conquistamos isso. Estamos comemorando e respirando com alívio, mas sabendo também que não acabou. A favela continua organizada e pegando no pé, até ter certeza que é mais do que discurso”, resume Letícia*, moradora do Moinho há 17 anos.
Antes, a proposta imposta pelo governo Tarcísio era de vender os apartamentos da CDHU via carta de crédito. Os moradores teriam que pagar parcelas de 20% dos seus salários ao longo de 30 anos. Para a imensa maioria que teria de esperar o imóvel ter as obras concluídas, o auxílio aluguel era de R$ 800.
De acordo com a CDHU, 186 das 854 famílias da favela do Moinho se mudaram da comunidade nos termos desta proposta. “Todas as famílias que já assinaram contratos ou realizaram suas mudanças também entrarão nesta nova resolução por meio de uma portabilidade de contratos”, informou a entidade.
Ao Brasil de Fato, a associação de moradores do Moinho informou que, até onde sabe, nenhuma família chegou a pagar qualquer parcela à CDHU.
Ivânia Elisama, de 25 anos, e sua filha são uma das seis famílias que saíram da comunidade direto para uma das unidades habitacionais prontas da CDHU. Estão em um apartamento em Itaquera, na zona Leste. Todas as outras estão vivendo de aluguel com o auxílio que, no mês que vem, deve aumentar.
Segundo Ivânia, lhe foi dito que seu novo apartamento vinha com vaga na garagem e que o condomínio seria de R$ 160. Não tem espaço para carro e o valor é de R$ 180. “Eu estava preocupada com o valor das parcelas, como ia ficar”, relata, “mas depois da vitória de ontem, que ganhamos ‘chave a chave’, agora os documentos vão ser feitos novamente”.
O Brasil de Fato questionou o Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI) sobre os detalhes do novo acordo e sua implementação, mas não recebeu resposta até o fechamento desta matéria. O texto será atualizado caso haja retorno.
Pressão do Moinho e mudança de posição do governo federal
“Hoje foi tiro de bala de borracha, amanhã pode ser de fuzil. O que vocês estão esperando? Tem que se posicionar para ontem”. A fala de Yasmim Flores, feita na última terça (13), ainda com os olhos vermelhos do gás de bomba da polícia, foi dirigida ao superintendente da Secretaria de Patrimônio da União (SPU) em São Paulo, Celso Carvalho.
Proprietária do terreno, a SPU, órgão do governo federal, optou por ceder a área gratuitamente para o governo de São Paulo. A remoção gradual levada a cabo pela gestão Tarcísio foi denunciada desde o início pelos residentes do Moinho. Em entrevistas à imprensa, reuniões com autoridades, protestos na avenida Rio Branco e bloqueios da linha do trem, moradores alegaram estar sendo coagidos – pela falta de alternativa ou pela violência policial – a aceitar um acordo descolado do perfil econômico da comunidade.
Em faixas e cartazes, a comunidade cobrou sistematicamente o governo Lula (PT) a se posicionar frente à violência em curso na área de sua propriedade. Em notas que pareciam ignorar o que a comunidade gritava estar acontecendo, a SPU afirmava que a cessão da área só aconteceria mediante a garantia de moradia digna às famílias e a retirada sem violência.
A repressão policial da última terça-feira apareceu em diversos os canais de TV. Imagens de senhoras tossindo sem ar, jovens com a cabeça sangrando e mães implorando para passar a barreira do choque para alcançar seus filhos inundaram as redes sociais. Autoridades, como parlamentares e o ouvidor da polícia, foram democraticamente reprimidos como todos os outros moradores do Moinho. À noite, o governo federal soltou uma nota dizendo que, se a violência seguisse, iria paralisar a cessão do terreno.
Na quinta-feira (15), duas delegações do governo federal foram a São Paulo. Uma delas, protagonizada pelo ministro das cidades, Jader Filho e pela ministra substituta do MGI, Cristina Mori, se reuniu com o governo Tarcísio. Outra, com as integrantes da Secretaria Geral da Presidência, Kelli Mafort e Isadora Brito, foi ao Moinho.
Para a delegação escolhida para dialogar com moradores, foram convocadas a secretária-executiva da SGPR, Kelli Cristine Mafort, e a secretária-adjunta da Secretaria Nacional de Diálogos Sociais e Articulação de Políticas Públicas, Izadora Gama Brito. Horas depois, uma coletiva de imprensa anunciou o novo acordo.
“A briga foi muito grande. Tivemos que passar por muita coisa, né? E é isso. Lutar para que tudo dê certo. Para que não volte atrás. Porque você sabe que querendo ou não, os políticos uma hora dizem uma coisa, outra hora fazem outra. É complicado”, avalia Ivânia: “Eu espero com fé em Deus que tudo dê certo”.
*Nome alterado para a preservação da fonte.