Um coletivo de Povos e Comunidades de Tradição Religiosa Ancestral de Matriz Africana (Pctrama) que atua na bacia do Rio Paraopeba, em Minas Gerais, denuncia a falta de reparação e de respostas das instituições de justiça (IJs). Eles são atingidos pelo rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, que provocou a morte de 272 pessoas e impactou a região e seus moradores.
Os povos e comunidades reivindicam a inserção no Programa de Transferência de Renda (PTR), previsto no acordo de reparação firmado entre o Estado de Minas Gerais, as IJs e a mineradora. Érika Viana Pires, enfermeira e moradora de Betim que frequenta um terreiro em São Joaquim de Bicas, ambos municípios atingidos, explica que acessar o PTR seria o “mínimo” para quem teve impactado um direito imensurável: o de praticar a própria fé.
“Seria um passo para uma pequena reparação relacionada às perdas ancestrais que todos nós tivemos. Nós temos uma relação muito íntima com a natureza, que é o nosso ‘axé’, a nossa força, a nossa energia vital. Rios, matas e cachoeiras são lugares onde nós cultuamos a nossa vida e isso nos foi tirado de uma forma criminosa”, explica.
Ela relata que, após o crime cometido pela mineradora, muitas pessoas passaram a ter que se deslocar para locais distantes para poder exercer a religiosidade. “Esse deslocamento, às vezes, acontece até sem recursos. Acessar o PTR é o mínimo de reparação e de reconhecimento de que nós existimos”.
Segundo o coletivo, em uma reunião realizada no dia 12 de maio, as IJs e a Fundação Getúlio Vargas (FGV), que gerencia o programa, foram questionadas pela falta de respostas ao pedido de inclusão das comunidades, mas o Pctrama diz que segue sem devolutivas.
O anexo 1.2 do acordo de reparação, que trata sobre o PTR, determina que quem tem direito ao recurso, que equivale atualmente a um salário mínimo, são pessoas atingidas em um raio de até um quilômetro do Rio Paraopeba. Ao mesmo tempo, os critérios de adesão ao programa o amplia para familiares de vítimas fatais e povos de comunidades tradicionais.
Dessa forma, o coletivo compreende que os povos de matriz africana da região também têm direito ao recurso, como explica Beatriz Borges Bastos, membro do Pctrama.
“Nós não estamos a um quilômetro do Rio Paraopeba, nós estamos dentro do Rio Paraopeba. O rio faz parte da gente, da nossa tradição, do que nós somos na nossa cosmo-percepção. Não cabe a compreensão da edificação de casas físicas para os povos de matriz africana e é preciso respeitar o nosso modo de vida”, argumenta.
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Falta de respostas
Nos últimos anos, o coletivo elaborou estudos técnicos, organizou reuniões e mobilizações, como forma de pressionar as entidades pela adesão ao programa. Bastos relembra que, no fim do ano passado, a FGV contratou uma perícia para analisar os documentos produzidos pelos povos.
Segundo ela, após a análise, a fundação fez uma complementação e encaminhou para as IJs no dia 5 de fevereiro, que ainda não deu nenhuma resposta às comunidades.
“Agora, estamos buscando outras estratégias para denunciar essa violação, porque estamos sem conseguir fazer a manutenção prática dos nossos terreiros, por conta do não acesso ao PTR, que tem a intenção de fazer a mitigação dos danos até que o processo de reparação aconteça”, relata a integrante do Pctrama.
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Impactos
“Antes, a gente se deslocava para o Rio Paraopeba, que era muito perto do nosso terreiro. Agora, temos que ir para muito mais longe, ou seja, gastando mais. Antes, a gente pegava ervas ao redor do rio; agora, temos que comprar. O PTR iria contribuir para que a gente fizesse a manutenção do nosso sagrado, do nosso modo de vida, do nosso modo de existir”, conclui Beatriz Borges Bastos.
Além do aumento com os gastos, os povos denunciam que uma das consequências diretas do rompimento para as comunidades é o impacto no vínculo territorial, que, como mencionado acima, para eles, é parte estruturante da manifestação da fé. É o que chama a atenção Edvaldo de Jesus, morador de Juatuba cujo nome tradicional é Baba Edvaldo de Oxaguian.
“A vinculação territorial ancestral está sendo rompida, o que representa um prejuízo ao patrimônio cultural das comunidades tradicionais. Mas a lista de impactos é ainda mais vasta: risco à saúde pela contaminação das águas, do solo e do ar; impacto à saúde mental; desvalorização e degradação imobiliária e territorial, etc”, elenca.
Ele ainda destaca que, como resultado do crime e das consequências deixadas pelo rompimento, os atingidos convivem com um contexto de “precarização socioterritorial”.
“A tragédia de Brumadinho promoveu uma precarização socioterritorial, o que, inevitavelmente, aumentou a pobreza e diminuiu as oportunidades de ampliação de renda de nossas comunidades, para além da poligonal aleatória de um quilômetro de distância do Rio Paraopeba. Também há angústia em relação à falta de respostas sobre o acesso ao PTR e pela frustração de saber que os direitos dos povos estão sendo desconsiderados em função da ‘menos valia’ que o Estado e a sociedade têm para com o povo preto e pobre”, explica.
Luta pelo reconhecimento
Mesmo convivendo diretamente com os impactos do rompimento, a comunidade também lamenta o fato de precisar ainda lutar pelo reconhecimento como sujeitos atingidos.
Cinda Airá de Oliveira Rabelo, cujo nome tradicional é Kyalunde, tem 48 anos e mora em Belo Horizonte. Ela se apresenta como “atingida pelo crime da Vale”, já que pertence à comunidade Bakise Bantu Kasanje, localizada no município de Mateus Leme, também atingido pelo rompimento.
Kyalunde explica que os conceitos de “família” e “território” adotados pelos povos de matriz africana possuem singularidades que precisam ser consideradas pelo poder público, pelo judiciário e pela empresa, ao se pensar nos processos de reparação.
“Para nós, os laços familiares se dão por meio das nossas relações tradicionais, culturais e religiosas. Entendemos por família as pessoas que convivem e compartilham da tradição e da cultura, que não necessariamente têm uma relação consanguínea. A questão do território, para nós, também é diferente do que é conceituado pela Vale. Nosso território não é medido por quilômetro”, explica.
“Nós fazemos parte da natureza e a natureza somos nós. Quando o crime da Vale destrói um rio, ela está nos atingindo diretamente, porque ela está destruindo algo que faz parte da nossa essência, que faz parte do nosso ser. Então, houve a destruição de parte da nossa comunidade”, continua.
Diante desse contexto, as comunidades questionam: se elas foram atingidas, por que não conseguem acessar o recurso do PTR?
O que dizem as instituições de Justiça?
A reportagem entrou em contato com o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG), instituições de justiça que fizeram parte da assinatura do acordo de repactuação, e perguntou quais são os motivos de as comunidades ainda não acessarem o PTR.
Em nota, a DPMG afirmou que os povos de tradição religiosa africana “estão abrangidos no PTR de uma maneira geral”, mas que, para casos em que as comunidades não estão inseridas “nas poligonais geográficas de abrangência”, estão em andamento “verificações pertinentes para que o programa atenda a todos aqueles que façam jus à transferência de renda.”
As demais instituições não responderam até a publicação desta matéria, que será atualizada, caso haja algum posicionamento das IJs.