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Sabe Som?

‘Nós só estamos vivos porque as pessoas improvisaram’, afirma Thiago Sonho, do Melanina Jazz

Contra o racismo artístico, projeto reinventa o jazz com festa, afeto e crítica social

Transformar o jazz em linguagem cotidiana é o que move o projeto Ikê Melanina Jazz, criado pelo baterista Thiago Sonho e pelo trombonista Allan Abbadia, convidados do episódio do Sabe Som? desta sexta-feira (23). Em conversa com o apresentador Thiago França, o percussionista Thiago Sonho conta que a proposta nasce do incômodo com  os apagamentos históricos e a elitização da arte negra, e busca retomar o improviso como forma de vida e resistência.

“A pessoa preta, ela saiu de um lugar onde ela não tinha mais família, ela não tinha mais nome, ela foi parar em outro lugar, onde ela não podia estudar… a vida da pessoa já é no improviso. Nós só estamos vivos porque as pessoas improvisaram”, resume. “A gente pensa jazz como expressão. A gente [está] partindo sobre o olhar da expressão negra, o lance do improviso, da singularidade, de oferecer sempre um diálogo”, completa, sobre o ritmo não se resumir simplesmente à técnica musical.

“O jazz é afastado do povo por conta desse elitismo. Que é esse mesmo elitismo que também pega o hip-hop e joga num outro lugar. E isso, eu chamo de racismo artístico. Querem colocar em caixinhas, em níveis: ‘isso aqui é melhor, isso aqui é pior’. Quando, na minha visão, nós estamos falando só de estéticas e visões de mundo”, explica Thiago Sonho. 

A inquietação, compartilhada com Abbadia há muitos anos, culminou em um desejo comum: criar um espaço para “desaguar” os incômodos que atravessam a vivência de artistas negros no Brasil, especialmente dentro do universo do jazz. Diante disso, Sonho explica que a visão do Melanina Jazz precisa ser ampla, para tentar dar conta das muitas experiências da diáspora africana.

Ao lado do artista visual Flávio Benatti, o Ikê Melanina Jazz vai além da pesquisa musical: é também festa, roda de conversa, pista de dança e provocação política. “Nós começamos a ter algumas visões a respeito da questão meio sociomusical, da coisa social que ronda a arte”, relembra o baterista. 

Gênero democrático

Realizada no Centro de São Paulo, a festa promovida pelo grupo já misturou samba, jazz, capoeira, projeções visuais, poesia e funk carioca — tudo na mesma noite. Um dos momentos mais emblemáticos foi a edição batizada de Melanina Jazz Funk, que surpreendeu parte do público: “Claramente as pessoas não entendiam várias coisas que a gente estava propondo”, conta Abadia. Ele explica que a proposta é justamente essa: provocar, expandir o imaginário, tirar o jazz do pedestal e devolvê-lo para a rua.

Sobre a proposta multilinguística da iniciativa, Sonho diz: “O Flávio cria imagens que inspiram a música, e a nossa música inspira novas imagens. É troca, é terreiro, é festa. E a festa preta é lugar de saber”. “A gente quer que a pessoa se aproxime de um lugar que, de certa forma, é negado pra ela”, completa Abbadia.

Para ele, parte disso também passa pela escolha do Centro para a realização das festas, garantindo um acesso mais democrático. “O lance da gente criar mais um ambiente para que as nossas propostas pudessem ser ouvidas foi muito importante”, explica.

Ao se afastar do modelo tradicional de clubes caros e elitizados, o Melanina Jazz reconecta o jazz com a vida cotidiana, como explica Sonho: “As casas de jazz são extremamente caras pra entrar. Vai afastar o povo. Não tem como não afastar”.

Além das apresentações, o grupo também lançou dois singles. O primeiro, Monifer Preta, destaca que “o afeto é uma das principais armas do nosso povo para a gente estar vivo”, e o segundo, Favela Segue, questiona os estereótipos e discursos de sucesso associados à periferia. “Será que a favela venceu mesmo?”, provoca Sonho. 

Ambos os trabalhos são atravessados por samples, beats e camadas melódicas que homenageiam e remixam referências como Mano Brown, Alcione, Moacir Santos e Milton Nascimento.

Se o ritmo foi moldado pela dor e pela inventividade de quem sempre improvisou para sobreviver, o Ikê Melanina propõe uma reconexão com essas origens, não para reproduzi-las, mas para reinventá-las com liberdade e consciência.

O baterista defende que criar é também enfrentar os apagamentos históricos. “São pensamentos que ficaram e pensamentos que emancipam a cabeça das pessoas. Se o Moacir Santos não teve seu trabalho reconhecido, será que eu vou ter o meu?”, questiona. “Quando a gente afasta o povo desse lugar, a gente nega que ele possa sonhar.”

O podcast Sabe Som? vai ao ar toda sexta-feira, às 10h da manhã,  e está disponível nas principais plataformas de podcast como Spotify e YouTube Music.

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