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A coluna Cidade das Letras: literatura e educação é mantida por Luciano Mendes de Faria Filho, que é pedagogo, doutor em Educação e professor  da U...

Felicidade instagramável

Os poetas há séculos falam das dores da alma

Por Natália Gil

Outro dia postei nas minhas redes sociais um poema da Cecília Meireles em que ela diz que a felicidade custa a vir e, quando vem, não se demora. Em seguida, algumas pessoas amigas me escreveram perguntando se eu estava bem. A resposta é sim: estou tão bem quanto ontem e, provavelmente, tanto quanto amanhã.

Isso significa que tenho com boa frequência momentos de suavidade e alegria – quem convive comigo sabe que é raro que eu esteja de mal humor ou desanimada –, mas que a minha alma é triste quase o tempo todo. 

Dado o ocorrido, fiquei pensando no modo como temos nos relacionado com a expectativa de felicidade na atualidade. Temos anseio de que a vida possa ser instagramável o tempo todo, ou seja, que ela seja sempre bela e animada como as fotos postadas no Instagram.

E isso me parece ter nos deixado menos preparados para o fato de que, fora das redes sociais, no tal “mundo real”, há mais momentos difíceis e de desaprazer do que aquilo que se escolhe postar.

Mesmo sem recorrer aos filtros que deixam as pessoas mais jovens e as comidas com aparência mais apetitosa, quando postamos extratos da vida, fazemos necessariamente uma seleção do que partilhar que tende a passar, não tanto pelo que estamos vendo ou sentindo efetivamente, mas principalmente por aquilo que percebemos como expectativa dos “seguidores”. E essa demanda tem sido, cada vez mais, por expor uma felicidade intensa e sem fim. Irrealizável, convenhamos, na vida de qualquer ser humano.

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Fiquei pensando também no quanto temos deixado de lado a intensidade da própria experiência, do fato de presenciar uma linda lua cheia por exemplo, para nos ocuparmos em tirar muitas fotos, afastando o “risco terrível” de não termos nenhuma boa para as necessárias postagens.

E o que dizer da cena, infelizmente frequente, em que alguém espera para dar a primeira garfada até que um outro alguém tire fotos da comida recém-servida e ainda verifique se ficaram suficientemente boas?

E que esse meu texto não pareça lição de moral, já protagonizei várias dessas cenas e, sim, eu era a pessoa que tirava a foto antes de alguém outro poder começar a comer. Além disso, preciso dizer que não vou deixar de fazer registros instagramáveis de alguns dos momentos da minha vida! O problema, me parece, é que isso seja o centro das preocupações quando estamos vivendo momentos felizes, que afinal são raros.

Muita maquiagem

No ano passado, tive a oportunidade de assistir acompanhada dos meus filhos a um eclipse total do sol. Foi uma vivência única, de forte emoção. O céu adquiriu uma luminosidade indescritível que por poucos minutos dominou a paisagem e o círculo do sol foi todo coberto pela lua numa duração de segundos. Eu sabia que nenhuma foto seria capaz de reter esse momento e que a lembrança ficaria registrada em mim por outros sentidos que não apenas a visão. Ainda assim não resisti a tirar umas (poucas) fotos, que, evidentemente, ficaram muito sem graça. Longe, completamente longe, da intensidade da experiência.

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Nos dias seguintes, vi várias fotos do eclipse nas redes sociais e me impactei pelo fato de que elas eram, como imagem, muito mais bonitas, coloridas e espetaculares do que aquilo que eu tinha efetivamente visto.

Havia muita maquiagem nas fotos, algumas absurdamente exageradas. Isso porque, na experiência real, não se tratava tanto de um fenômeno impressionante para a visão (nossa visão já tão acostumada com tudo que Hollywood pode fazer de visualmente incrível tem exigido cada vez mais para se impressionar!), mas de um fenômeno existencialmente impactante.    

Hoje em dia, nosso paladar quer tudo bem doce, nossa visão quer tudo espetacular, nosso corpo quer eliminar toda dor e qualquer desconforto, nossa emoção quer apenas a felicidade.

Vida também dói, decepciona, frusta, entedia

E, assim, vamos nos distanciando daquilo que é a vida, a experiência humana, tão simples quanto incontornável, que inclui o que dói, decepciona, frusta, entedia. Cada um desses elementos tem, cada vez mais, sido relacionado com a necessidade de eliminar, desconsiderar, abreviar, esconder.

Dar espaço na vida também para a tristeza é fundamental. Nos últimos anos, tenho aprendido que saber viver o luto com a calma que o processo requer é aceitar-se humano.

E é na literatura, afinal, que fica mais evidentemente que essa necessidade não diz respeito apenas à minha vida. Não significa que eu, especificamente, “não dei sorte” e por isso vivo uma tristeza persistente.

Era o que dizia o poema da Cecília Meireles que eu postei nas redes sociais: “Felicidade, és coisa estranha e dolorosa / Fizeste para sempre a vida ficar triste: / porque um dia se vê que as horas todas passam / e um tempo, despovoado e profundo, persiste” (Epigrama n. 2).

Não era, portanto, sobre a minha vida; era sobre nossas muito humanas dores da alma. Os poetas há séculos nos falam sobre isso.

Natália Gil é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do grupo de pesquisa “HISTEB – História da escolarização no Brasil: políticas e discursos especializados”. Tem se dedicado a investigar a história da exclusão na escola brasileira e as implicações dos processos de quantificação em educação.

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Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

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