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A coluna do Movimento Brasil Popular é publicada quinzenalmente às quartas-feiras. Escrita por militantes do movimento de todo o Brasil, ela aborda...

Frei Betto: Luta, resistência, mística e exemplo

Celebramos, na cidade de São Paulo, a incorporação de um cidadão singular, com uma luta e atuação política que são exemplo

Luiza Troccoli

No fim do mês de maio, tivemos a oportunidade de rememorar, celebrar e mais uma vez nos inspirar pela trajetória de Frei Betto, educador popular, frade dominicano e lutador do povo brasileiro, que recebeu o título de cidadão paulistano em sessão solene na Câmara Municipal de São Paulo. Em tempos em que a fome volta a ocupar os jornais e o cotidiano dos brasileiros, e que a educação popular emerge como antídoto para a desmobilização e a desesperança, recuperar o seu legado ilumina os passos que temos que tomar para a superação dos desafios da atualidade.

Talvez o grande ensinamento que Frei Betto vem reforçando ao longo de tantos anos de luta é sua profunda confiança no povo brasileiro, confiança na capacidade desse povo oprimido e explorado de, mesmo diante da adversidade, levantar a cabeça e tomar as rédeas de sua própria história. Em um contexto no qual convivemos diariamente com tantas formas de desumanização, talvez não haja coisa mais radical do que crer na potência do ser humano, na sua capacidade de aprender e ensinar, na sua capacidade de amar e ser amado, sua capacidade de ser.

Betto carrega essa crença inabalável por todos os lugares onde passa. Onde os poderosos veem barbárie, ele vê a esperança; naqueles onde os poderosos veem sub humanos, ele vê sujeitos. Sujeitos produtores de sua própria cultura, de sua leitura de mundo, de suas pedagogias, seus meios de sobrevivência, sua amorosidade. 

Em suas visitas à Escola Nacional Paulo Freire, Betto sempre nos fala do “método do saca-rolhas e da chave de fenda”, no qual o papel dos educadores e educadoras populares é extrair dos educandos os conhecimentos e leituras de mundo que estes já têm para depois ajustá-los, qualificá-los, apertar seus parafusos e construir criticidade.

Nascido em Belo Horizonte e hoje também cidadão paulistano, Betto percorre a história brasileira sob a ótica dos trabalhadores e trabalhadoras, dos pobres e oprimidos que vêm, desde sempre, construindo essa nação. Ex-integrante da Aliança Libertadora Nacional, resistiu à ditadura e, acusado de terrorista, foi preso duas vezes, passando por 6 penitenciárias, mas não permitiu que a animosidade desfizesse sua ternura, sempre empenhado em semear a paz e o amor entre os homens e mulheres. 

Em sua passagem pela penitenciária de Presidente Venceslau, combinou os métodos de Paulo Freire e Augusto Boal, construindo com os presos dinâmicas de encenação de suas próprias histórias de vida, resultando em 3 espetáculos abertos ao público em Presidente Venceslau, no interior de São Paulo, cidade que à época não contava com nenhum teatro. Um desses espetáculos foi baseado no capítulo 9 do evangelho de João, no qual os fariseus culpam um enfermo de estar doente porque pecou. Jesus o cura, e mostra a ele que sua doença não era culpa de Deus, havendo múltiplas determinações vindas do contexto social.

Profundamente comprometido com a revolução cubana, o farol de esperança de nosso continente, Betto cumpriu papel central no impulsionamento da educação popular na ilha. Conheceu Fidel Castro na década de 80, de quem se tornou amigo e companheiro, contribuindo ativamente no processo de balanço e renovação do regime revolucionário e estreitando os laços Brasil e Cuba, inclusive facilitando a relação do MST com o regime, hoje relação quase umbilical.

Em sua luta incansável “hasta que la dignidad se haga costumbre”, Betto não deixa que a indignação deixe de traçar seus passos, e tem sido peça chave no combate à fome e insegurança alimentar, dando luz a essa pauta há décadas. 

No primeiro governo Lula foi assessor especial da presidência e coordenador da Mobilização Social do Programa Fome Zero. Atualmente é assessor da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura) para a Soberania Alimentar e Educação Nutricional e trabalha com o Plano de Segurança Alimentar e Educação Nutricional de Cuba, implementado pela FAO.

Celebramos, na cidade de São Paulo, a incorporação de um cidadão singular, com uma luta e atuação política que são exemplo. Mesmo assim, nunca abandonou sua humildade, sua escuta atenta, seu compromisso com cada sujeito que cruza seu caminho. 

É notável a disposição que Betto tem em passar adiante sua experiência e conhecimento acumulado, sempre disponível para nos brindar com suas oficinas de educação popular, fonte de inspiração para todos nós. Com este texto, gostaria de registrar o enorme privilégio dos que têm a oportunidade de conviver e aprender de Frei Betto, companheiro de resistência, luta, mística e exemplo para nós, lutadores e lutadoras do povo, nós, a juventude que assume o compromisso de seguir na luta cotidiana pela democracia, pela memória, verdade e justiça, pela dignidade, pelo protagonismo popular e pelo povo brasileiro em toda sua potência. A cidade de São Paulo lhe é só gratidão.

*Luiza Troccoli é membro da coordenação da Escola Nacional Paulo Freire e militante do Movimento Brasil Popular.

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