A arqueóloga Niède Guidon, que revolucionou a teoria sobre o povoamento do continente americano, morreu nesta quarta-feira (4) aos 92 anos. Nascida em Jaú, no interior de São Paulo, Guidon se formou em história natural pela Universidade de São Paulo (USP) e doutorou na Universidade de Paris. Dedicou sua vida aos estudos e à proteção da Serra da Capivara, no Piauí.
Foi ali que encontrou base sólida para contestar a hegemônica teoria arqueológica estadunidense de que a única via pela qual humanos teriam chegado às Américas foi pelo estreito de Bering. A teoria aponta que a passagem, então congelada, conectou a Sibéria e o Alasca há aproximadamente 13 mil anos.
Para Guidon, esta tese, bastante sólida, explica uma das formas pelas quais o continente foi ocupado. Mas não todas. Em suas pesquisas na Serra da Capivara, a arqueóloga encontrou vestígios de presença humana que, segundo ela, datam de 60 mil a 100 mil anos.
O encontro de Niède com a Serra da Capivara
Niède Guidon tinha 30 anos e trabalhava no Museu Paulista da USP quando ouviu falar pela primeira vez nas pinturas rupestres no Piauí. Com seu fusca, tentou chegar, mas o acesso era difícil demais. No ano seguinte, veio o golpe empresarial-militar, que impulsionou a sua decisão de estudar na França.
Foi só em 1970, quando voltou ao Brasil, que viu finalmente os desenhos pré-históricos. Percebeu que era algo grande. Em 1973, trabalhava no Centre National de La Recherche Scientifique de Paris como assistente da arqueóloga francesa Annete Emperaire, que buscava os indícios mais antigos da presença humana no Brasil. O foco de Emperaire era a região de Lagoa Santa, em Minas Gerais. Guidon preparou a viagem da equipe para os arredores de Belo Horizonte, mas informou que ela mesma iria para o sul do Piauí.
A partir daí, Guidon nunca mais saiu da região de São Raimundo Nonato, onde faleceu nesta quarta-feira por questões de saúde ainda não divulgadas. Ali encontrou mais de mil sítios arqueológicos.
Em uma palestra feita durante a exposição científica Revolução Genômica no Parque do Ibirapuera em 2008, Guidon explicou acreditar que o Homo sapiens atravessou o oceano Atlântico vindo da África. Por conta de uma grande seca, povos teriam ido para o mar em busca de comida e sendo empurrados oceano adentro por tempestades.
“O mar estava então 140 metros abaixo do nível de hoje, a distância entre a África e a América era muito menor e havia muito mais ilhas”, argumentou Niède na época, segundo registro da Revista Fapesp.
Em seu entendimento, os vestígios das pinturas e dos esqueletos encontrados no Piauí, bem como os que na década de 1970 foram descobertos em Minas Gerais, têm características morfológicas de povos africanos e aborígenes. Diferentes, portanto, das de povos asiáticos, que teriam atravessado o estreito de Bering.
A proteção do sítio arqueológico
Graças à atuação de Niède Guidon, em 1991 o Parque Nacional Serra da Capivara foi incluído na lista de Patrimônio da Humanidade da Unesco. Ela também é uma das criadoras da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), responsável pela pesquisa do acervo natural e cultural da região.
Em 2024 Guidon recebeu o título de Doutora Honoris Causa da Universidade Federal do Piauí (UFPI) pelos seus feitos após mais de 50 anos de estudos arqueológicos no estado.
Nesta quarta-feira, o governo do Piauí afirmou que o legado de Guidon para a ciência e a arqueologia é “inestimável”. A gestão decretou três dias de luta oficial.
Em nota, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) declarou que “com coragem, rigor científico e compromisso com a educação, Niède construiu um legado que transcende a ciência”. De acordo com a pasta, Guidon “foi também uma das vozes mais firmes na defesa da valorização do conhecimento e da presença feminina na ciência”. Ela deixa, diz a nota, “uma marca indelével na história do Brasil”.
Também no ano passado, Niède Guidon foi homenageada com o nome de uma nova espécie de ave que ainda não tinha sido catalogada. Com um canto de ritmo lento e persistente, a Sakesphoroides Niedeguidonae vive no entorno do parque que a arqueóloga dedicou a vida para proteger.