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Doutor, mestre, especialista e graduado em Letras. Pesquisador em Literaturas de Língua Portuguesa e Francesa, professor e escritor. Publicou, dent...

Poemas do grito de liberdade: ’72’, de Cláudia Rejanne Pinheiro Grangeiro

Por não aceitar o controle, a repressão e outras 'grades' socialmente construídas, muitos dos poemas manifestam-se pelo uso da palavra sem amarras.

Cláudia Rejanne Pinheiro Grangeiro é uma intelectual do Cariri cearense que atua em frentes diversas. No âmbito literário, além de ter participado de performances poéticas, movimentos literários e antologias, a autora publicou, em 2022, o livro de poemas intitulado 72.

Com temáticas variadas, o livro dispõe de ousadas incursões no que diz respeito ao conteúdo e à forma. Composto por mais de setenta e dois poemas, ele traz linguagem objetiva capaz de expressar de forma direta, e não menos poética, percepções e reflexões de uma autora experiente em seu ofício. Metáforas, aliterações, sinestesias, dentre outros recursos estilísticos utilizados por ela, estão a serviço de uma construção expressiva e polissêmica do texto.

Em poemas curtos ou amplos, tudo concorre, na escrita da autora, para a percepção de que a palavra não deve ser aprisionada. Nesse jogo, está aberto o caminho para a crítica social, a liberdade de expressar emoções, a coragem de falar sem medo e, sobretudo, a fuga ao que há de hipocrisia e de aprisionamento no mundo.

Estamos no universo de uma mulher cuja voz irrompe, rebelada, no campo do que Clarissa Pinkola Estés, autora do livro Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem, denomina “mulher selvagem”, isto é, a que, como os lobos, não pode deixar morrer dentro de si: “percepção aguçada, espírito brincalhão e uma elevada capacidade para a devoção”. Essa “mulher selvagem”, feroz em determinação, não aceita regras impostas ao construir sua palavra em fogo vivo. Ela move-se no mundo em busca de horizontes de vida, como ocorre nos poemas: Metafísica da insônia ou niilismo madrugal, Carbonária, Nua, Fênix, Amélia, Uni verso, Sororidade etc. Para exemplificar, leiamos o poema Lume de lâmina:

vivo

no limiar do absurdo

entre o Éden e o Armagedon

vivo

a engasgar mil flechas

de alvoroço

vivo

no cume do vento

no lume da lâmina

que engasga a garganta da força

na medida do possível

mas a medida do possível

é quase sempre

uma medida impossível

(Grangeiro, 2022, p. 23)

Nessa perspectiva, em relação ao contexto dos debates feministas, que pensam o ser mulher através da palavra usada contra o hegemonicamente constituído, dois poemas merecem destaque. Refiro-me aos poemas: Amélia e Uni verso. Por apresentar uma releitura crítica da canção Ai que saudades da Amélia, de Ataulfo Alves e Mario Lago, Amélia é um dos poemas mais criativos do livro. Já Uni verso é um poema dos mais esteticamente trabalhados do livro, pois apresenta, para utilizarmos um termo de Viktor Chklovski, encontrado em seu texto A arte como procedimento, procedimentos de “singularização” da linguagem em amplas proporções. Isso fica nítido no trecho:

Há noites de grandes luas

e os grandes lábios, ao vê-las

se alvoroçam e saem a beijar as estrelas

Minha boceta é o Monte das Oliveiras

e só há mais uma coisa que eu confesso:

o meu clitóris é o centro do

uni

verso

(Grangeiro, 2022, p. 70)

Vários poemas trazem essa liberdade de criação no âmbito da linguagem. Nessa obra, a linguagem está a serviço da expurgação sincera dos sentimentos e, desse modo, não comportaria comedimentos linguísticos. É o caso do poema de humor ácido Novidade:

natal velho ano

papainoelsorrisoamarelo

gingle bell, simone, mary xmas

meu coração purotédio argumenta:

que há de novo

nessa cidade cinzenta?

(Grangeiro, 2022, p. 28)

Devo dizer, também, que o patriarcado (com prisões que têm sido desconstruídas, mas que ainda pairam, feito sombra, no mundo necessitado de renovações) recebe crítica em textos entre ousados e irônicos, como no micropoema seguinte:

Meio

O homem é produto do meio

das pernas

(Grangeiro, 2022, p. 29)

Além disso, há poema gestado no que há de lírico e de profundo no campo dos afetos, como é o caso de Noturna, Cais, Seiva, Punhal de prata, Ouro, Prata e Diamante, dentre outros. Um deles, releitura de um gênero poemático trovadoresco, traz uma voz lírica que, como nas cantigas de amigo, sofre e lamenta por estar distante do ser amado:

Cantiga de amigo

deserto é estar distante

do ser a que se adora

saudade me bota louca, menino

e quase me leva embora

(Grangeiro, 2022, p. 43)

A identidade auferida pela experiência de pertencimento, compreendida como parte de um todo simbólico que tem, no Cariri cearense, seu espaço preferencial, é perceptível nos poemas: Vou no vento, Mar do Araripe e Devoção:

ah, Juazeiro, Juazeiro

em cada sala um altar

em cada quintal um terreiro

(Grangeiro, 2022, p. 82)

O grito contra as hipocrisias do mundo está presente em poemas de cunho político. Existem neles vozes líricas inconformadas com os problemas sociais brasileiros e, desse modo, fazem denúncia, como observamos em: Estado, Cria ação e Valei-me Brecht. Neste, a voz lírica assevera:

sua fala não me é convincente

na verdade sua fala é conivente

com quem bate de chicote no meu lombo

e ainda acha violento o meu grito

(Grangeiro, 2022, p. 35)

Conhecer a obra literária de Cláudia Rejanne Pinheiro Grangeiro é entender que o moderno não exclui a tradição. Nela, existe um nítido percurso construído pela sensibilidade de saber-se um espírito que olha para o passado e, percebendo-se no contemporâneo, sabe dizer de onde veio. Nesse sentido, as palavras estão abertas à experimentação, à leveza, à ironia, ao humor e à crítica.

Assim, por não aceitar o controle, a repressão e outras “grades” socialmente construídas, muitos dos poemas manifestam-se pelo uso da palavra sem amarras. Estamos diante de uma poeta consciente de sua escrita e que, por isso, não hesita em quebrar regras. Cada poema pode oferecer um universo de possibilidades, porque a autora não se limita. Antes, seus textos são instigantes e libertos.

Nascida em Juazeiro do Norte (CE), Cláudia Rejanne Pinheiro Grangeiro tem pós-doutorado, doutorado, mestrado e graduação na área de Letras. Atua como Professora no Curso de Letras, e no Programa de Pós-graduação em Letras, da Universidade Regional do Cariri (URCA). Entre livros ensaísticos e literários, publicou: O discurso religioso na literatura de cordel de Juazeiro do Norte (2001), Discurso político no folheto de cordel (2013), Benditos “Mauditos”: tradição e transgressão na literatura de cordel (2020) e 72 (2022). Participou das coletâneas: Laboratório do Caos – Coletânea de poetas do Cariri (2013) e Juazeiro tem artistas, Juazeiro tem poesia: manifesto poético (2024).

GRANGEIRO, Cláudia Rejanne Pinheiro. 72. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2022. 

* Émerson Cardoso é doutor, mestre, especialista e graduado em Letras. Pesquisador em Literaturas de Língua Portuguesa e Francesa, Professor e Escritor. Publicou, dentre outras obras, os livros: O baile das assimetrias (2022), Jornadas (2023) e Romanceiros (que recebeu o I Prêmio Literário Demócrito Rocha de 2024). Organizou Juazeiro tem artistas, Juazeiro tem poesia: manifesto poético (2024).

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. 

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