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Programa Escola Religiosa de Férias (RJ): um ataque à Constituição

Estado não pode delegar suas funções educacionais a entidades religiosas

Por José Antonio Sepulveda, Juliana Padilha, Denize Sepulveda e Amanda Mendonça

A Constituição Federal do Brasil em seu artigo 19 garante a laicidade do Estado, proibindo que o governo estabeleça, financie ou mantenha relações de dependência com qualquer religião.

Isso assegura que o espaço público, incluindo as escolas, não privilegie nenhuma crença, garantindo a liberdade de religião e a pluralidade cultural brasileira. O princípio da laicidade não significa repressão à fé, mas sim a garantia de que nenhum grupo religioso será privilegiado dentro das políticas públicas.

No âmbito educacional isso significa garantir a todos os alunos e alunas o direito de exercício de sua fé ou não, na vida privada, e que nenhum tema previsto nos parâmetros curriculares deixará de ser abordado.

A partir dessas informações é que questionamos a Lei nº 10.539/2024, sancionada no Estado do Rio de Janeiro, que propõe o Programa Escola Religiosa de Férias (ERF), e que prevê atividades de ensino religioso durante o recesso escolar para o “Ensino Infantil”, mesmo não sendo sua atribuição constitucional legislar para essa modalidade de ensino.

O Brasil possui uma grande diversidade religiosa, com centenas de denominações reconhecidas pelo IBGE, o que torna a implementação de programas de ensino religioso em escolas públicas um tema sensível.

Uma questão preocupante desta lei é a confusão que faz entre educação e ensino. Segundo a LDBN 9394/96 a primeira etapa da Educação Básica é a Educação Infantil e não o Ensino Infantil como enfatiza ERF, pois a Educação Infantil não trabalha com práticas pedagógicas que tem como meta o ensino e sim o desenvolvimento pleno e integral das crianças de zero à cinco anos de idade, como muito bem preconiza o Referencial Curricular Nacional Para a Educação Infantil (RCNEI) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A meta de ensinar alunas e alunos é atribuição a partir dos anos iniciais do Ensino Fundamental.

Preocupações

Com efeito, a criação desse programa levanta uma série de preocupações, dentre elas a sua constitucionalidade e impactos na educação pública. Além da questão do viés confessional, o ERF interfere no direito ao descanso de alunos e professores, que têm nas férias um período essencial para recuperação física e mental, além de planejamento pedagógico. Muitos estabelecimentos de ensino também utilizam esse período para reformas estruturais, que podem ser comprometidas pela manutenção de atividades contínuas.

Outro problema relevante é a possibilidade de que pessoas sem a formação adequada sejam contratadas para atuar no programa, ignorando a exigência da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de que os profissionais da educação básica possuam qualificação específica, visto que é assegurado por lei que os professores da Educação básica do Rio de Janeiro tenham suas férias centralizados no mês de janeiro.

Por fim, outro aspecto preocupante da Lei nº 10.539/2024 é a possibilidade de parcerias público-privadas para a execução do programa. A crescente influência de grandes conglomerados religiosos no setor educacional representa um risco à laicidade do ensino público, uma vez que essas organizações frequentemente possuem interesses ideológicos e comerciais atrelados à disseminação de suas doutrinas.

Além disso, o avanço de parcerias público-privadas pode levar a um processo de privatização gradual da educação pública. Em vez de fortalecer a estrutura educacional do Estado, o governo acaba delegando sua responsabilidade para o setor privado, abrindo precedentes para que as empresas passem a ditar os rumos da educação pública.

A presença desses grupos no sistema público de ensino pode resultar na mercantilização da fé, ampliando disputas entre denominações religiosas pelo controle de narrativas educacionais e pelo acesso a recursos governamentais.

Esse cenário reforça a necessidade de um Estado laico e independente, que não delegue suas funções educacionais a entidades religiosas, garantindo que a educação permaneça um direito universal e isento de viés confessional.

José Antonio Sepulveda é professor da Faculdade de Educação da UFF, professor do Programa de Pós graduação em Educação da UFF e coordenador do Observatório da Laicidade na Educação-OLÉ

Amanda André de Mendonça é professora da FFP/UERJ e do Programa de Pós Graduação em Educação da FFP/UERJ e integrante do OLÉ

Denize Sepulveda é professora da UERJ e do Programa de Pós Graduação em Educação da UERJ/PROPED e integrante do OLÉ.

Juliana Padilha de Oliveira é mestre em Educação na UFF e integrante do OLÉ.

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Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

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