Por Bruno Vieira Borges
O futebol não é mero receptáculo de distrações. Ele não se encerra no apito final da partida. Ao contrário: o futebol escorre, escapa, transborda, extravasa. Vai dar na identidade, nas guerras de ontem e nas fronteiras de hoje. Ele é uma forma de elaborar o mundo e de encenar as questões da existência humana. Não é por acaso que Albert Camus, um dos grandes nomes da literatura do século 20, uma vez disse: “Tudo o que aprendi na vida sobre moral eu devo ao futebol”.
Poucos lembram, mas antes de ser Nobel, Camus foi goleiro, um posto em que se treina, por excelência, a paciência, a intuição e a queda. E não foi goleiro daqueles de ocasião. Foi bom goleiro. Chegou a defender as redes do Racing de Argel. Conta–se que a avó de Camus, austera, inspecionava-lhe com rigor os sapatos ao fim de cada dia: se estivessem gastos, se revelassem vestígios de partidas proibidas, vinham os esporros e castigos. Teria sido por conta disso que ele decidiu-se por ser goleiro: era o jeito de manter as solas e os prazeres igualmente preservados.
Cair sem drama. Levantar sem glória. Muito antes de escrever O Mito de Sísifo, Camus já intuíra, debaixo das traves, a experiência do absurdo. A bola, como a vida, é imprevisível. Vem de onde menos se espera. Pode atravessar o campo inteiro numa troca de passes fulminantes e, num instante, exigir de você a decisão final. O goleiro é aquele que precisa agir apesar de seu destino cambaleante, que está sempre por um fio, à espreita de ser o bode expiatório, o culpado mais fácil.
Camus nasceu na Argélia, então colônia francesa. Branco, sim, mas pobre. Talvez tenha sido essa condição ambígua – a de estar dentro e fora ao mesmo tempo – que fez dele um estrangeiro no próprio idioma. Essa fratura, entre pertencimento e exclusão, atravessa sua obra e também sua biografia. E é justamente por essa fenda, aberta entre Argel e Paris, entre a colônia e a metrópole, que podemos entrever o papel central e histórico da migração na composição das seleções francesas. Porque, como Camus diante do sol implacável de O Estrangeiro, muitos dos maiores nomes do esporte francês também aprenderam a existir sob o peso da ambivalência: amados quando vencem, questionados quando falham. Franceses, sim – mas até que ponto?
O maior ídolo da história recente do futebol francês carrega sangue argelino, assim como Camus. Zinedine Zidane nasceu em Marselha, mas é filho de argelinos. A França campeã do mundo em 1998, comandada por ele, foi celebrada como uma epifania da convivência: negros, árabes, brancos, cristãos, muçulmanos, todos sob o azul da república. Era a utopia “black-blanc-beur” [“negro, branco, árabe”]. Contudo, os aplausos não duraram. Os mesmos heróis da Copa foram, anos depois, alvos de desconfiança. Bastava que perdessem um jogo ou que não cantassem a Marselhesa, o hino da França, para que se questionasse seu pertencimento. Franceses, sim – mas de qual França?
Zidane foi também figura do excesso. A cabeçada de 2006 – em plena final da Copa do Mundo – foi lida como descontrole, fúria e irracionalidade. Mas talvez devêssemos lê-la à luz de Meursault, o personagem de O Estrangeiro. Aquele que não chora no velório da mãe, e por isso é condenado. Aquele que afronta a norma não com discursos, mas com gestos que desestabilizam a lógica estabelecida. A condição do estrangeiro, tal como a compreende Camus, não se define exatamente pela pátria, mas pela sensação de não se encaixar no mundo tal como ele se oferece. É o estranhamento que se atualiza nos corpos migrantes, nos filhos do exílio, nos que vivem em trânsito.
Por isso, a cada lance disputa-se também a ideia de pertencimento – quem pode representar uma nação, quem pode cantar o hino, quem tem o direito de errar. O campo, com suas linhas retas e regras fixas, é muitas vezes o espelho de um mundo que não sabe o que fazer com a diferença. Pergunta-se: “você é um dos nossos?”. E a resposta parece flutuar, como uma bola alçada na área.
Camus aprendeu cedo que não há justiça garantida, que a lucidez muitas vezes é solitária. Zidane, por sua vez, mostrou que até os gestos mais controversos, como a cabeçada na final da copa de 2006, podem conter uma dignidade silenciosa, um protesto que não cabe nas palavras. No futebol, como na vida, há momentos em que se é estrangeiro mesmo falando a mesma língua, mesmo vestindo a mesma camisa. Jogamos, na verdade, não apenas para vencer, mas para habitar o mundo. E, se às vezes erramos o alvo, ainda podemos encontrar beleza no movimento – mesmo que seja o da queda. Camus talvez nos dissesse assim: o importante é só seguir jogando.
*Bruno Vieira Borges é formado em História pela Universidade de São Paulo, onde atualmente faz mestrado em Sociologia. Ele está associado ao Observatório do Lazer e do Esporte (OLÉ), ao Mobilidades: Teorias, Temas e Métodos (MTTM) e ao UrbanData-Brasil.