Desde que o samba é samba, ele é perseguido. A epígrafe que intitula o romance de Paulo Lins nos serve como fio condutor para compreender como, no Brasil, a arte negra tem sido historicamente tratada como ameaça — não como patrimônio.
A prisão recente do MC Poze do Rodo, ícone do funk carioca e voz potente das quebradas, não é um caso isolado. É mais um capítulo de uma longa e persistente tradição de criminalização das expressões culturais negras e periféricas. O alvo não é só o artista, mas todo um povo que ousa cantar suas dores, celebrar sua existência e denunciar um sistema racista.
Essa repressão não é nova. Vem desde os tempos em que o samba era considerado “coisa de vagabundo”, e sambistas como Donga, Pixinguinha, Cartola e Tia Ciata eram perseguidos pela polícia. A lógica é sempre a mesma: transformar cultura popular em caso de polícia.
Na Bahia, nos anos 70, a repressão se voltou contra os blocos afros e os afoxés. Em São Paulo, o Hip Hop nasceu sob vigilância policial. No Rio, o funk tem sido alvo constante de estigmatização e operações militares nas favelas. A arte negra, quando não serve ao espetáculo da branquitude, é vista como desvio, como perigo, como perturbação.
É preciso, aqui, afirmar com toda clareza: não é porque um artista canta sobre o crime que ele é criminoso. Esse é um dos fundamentos da licença poética — um direito consagrado na tradição literária e artística que reconhece que, na arte, o autor pode criar, dramatizar, exagerar, metaforizar. Pode cantar a vida como ela é, ou como ela poderia ser, ou como não deveria ser.
A arte não deve ser julgada como prova judicial. Ela é denúncia, é retrato, é desabafo. Criminalizar o conteúdo de uma letra é não compreender — ou fingir não compreender — o papel político da arte negra.
O mesmo Estado que ignora a ausência de escolas, de oportunidades, de saneamento, de segurança, de dignidade nas periferias, é célere e eficiente para criminalizar a música que denuncia esse abandono. Eu mesmo, nos anos 1990, fui preso após uma apresentação de Hip Hop no Vale do Anhangabaú, como Big Richard. O motivo alegado? Perturbação da ordem pública. Mas o que perturbava, de fato, era a nossa ousadia de cantar verdades incômodas diante do centro da cidade, diante do Brasil que prefere não ouvir as favelas.
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MC Poze, como Mano Brown, MV Bill, Racionais MC’s, Bia Ferreira e tantos outros, traduz em sua lírica a violência estrutural que estrutura nossas vidas. E não está sozinho. O rapper norte-americano Tupac Shakur — 2Pac — foi criminalizado nos Estados Unidos por suas letras que narravam as realidades de opressão, crime e sobrevivência no gueto. Em Brenda’s Got a Baby, ele narra a tragédia de uma menina grávida, negligenciada pelo Estado e pela sociedade. Em Changes, Tupac canta: “Cops give a damn about a negro? Pull the trigger, kill a nigga, he’s a hero.” [“Policias não se importam com um negro. Puxa o gatilho, mata um negro, vira herói”, em tradução livre] — uma denúncia explícita do racismo policial.
Tupac não era só um rapper. Era um cronista do seu tempo, como Poze é do nosso. E como no Brasil, ele foi perseguido, preso, e suas letras usadas como “provas” em tribunais. O que há de comum em todos esses casos é o uso do aparato jurídico e midiático para deslegitimar o artista negro como pensador, como produtor de saber e como sujeito político.
A arte negra incomoda porque é memória e insurgência. Porque não aceita o lugar imposto pela lógica colonial de silenciamento e submissão. Porque rompe com o mito da democracia racial e expõe a brutalidade cotidiana vivida nas periferias. Porque canta aquilo que muitos não querem ouvir.
A prisão de Poze é também uma tentativa de prender sonhos. E mais: é um aviso — ou uma ameaça — a todos os que ousam cantar contra a necropolítica. Mas como escreve Paulo Lins, o samba resiste. E o funk também. A favela tem voz, tem batida, tem estética, tem política. E por mais que tentem, não irão calar os tambores de um povo que transforma dor em arte e arte em liberdade.
A nossa música é trincheira. E como dizia Public Enemy: fight the power [“resista”, em tradução livre]. Porque desde que o samba é samba, estamos lutando.
*Richard Santos, também conhecido como Big Richard, é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), pioneiro da cultura Hip Hop no Brasil. Coordena o grupo de pesquisa Pensamento Negro Contemporâneo (UFSB/CNPQ).
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.