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A coluna Cidade das Letras: literatura e educação é mantida por Luciano Mendes de Faria Filho, que é pedagogo, doutor em Educação e professor  da UFMG, e por Natália Gil, que é pedagoga,  doutora e...ver mais

Crônicas de Viagem II: rios

Um lamento triste ecoa nos relatos de destruição dos rios pelo garimpo

Por Luciano Mendes

Em Pernambuco dizem, modestamente, que o Atlântico nasceu da junção do Beberibe e do Capibaribe, fenômeno este que ocorre justamente na cidade do Recife. Houvesse o São Francisco se juntado com o Jequitinhonha, o mar teria nascido no sertão! Uma lindeza de ver!

Brincadeiras à parte, é impossível não ficar maravilhado pela beleza das águas do Velho Chico em Petrolina, ou com a estonteante visão do estuário formado pelo desaguamento dos rios Jequitinhonha e Pardo no mar na região de Canavieiras e Belmonte, na Bahia. Fazer o passeio por meio dos manguezais é das experiências mais encantadoras da vida! Em ambientes como estes a gente tem a nítida impressão que todas as histórias das populações humanas e não humanas se encontram.

Chapada Diamantina

Esta ideia me voltou em nossa viagem pela Chapada Diamantina, na Bahia. Da exuberância do lugar e da importância das águas que, ali, possibilitam a vida para as populações humanas e não-humanas, as pessoas sempre nos diziam. E a eloquente beleza das paisagens e das histórias que contavam não deixavam de nos lembrar, sempre e sempre, o quão afortunados éramos nós que ali estávamos como viajantes e visitantes.

Capítulo à parte era o relato de várias pessoas, sobretudo daquelas que nos guiavam por vales, veredas, cânions, rios, serras e que tais, sobre os rios da região. A onipresença deles é tão sentida que não se imagina, por suposto, a vida sem eles. Das nascentes, dos pequenos cursos aos mais caudalosos rios, há uma história a ser contada para cada um deles.

Mas, do início ao fim da Chapada, se impunha, sempre, as referências ao rio Paraguaçu. Ele, que é o rio genuinamente baiano mais longo, nasce na Chapada Diamantina e percorre mais de 600 quilômetros até desaguar na Bahia de Todos os Santos, no litoral baiano. Dele se contam muitas e muitas histórias.

Ao mesmo tempo em que se celebra, pela palavra e pelo encanto, as belezas e benesses do Paraguaçu, há uma contínua lembrança dos tempos idos em que ele era navegável até as cidades da Chapada. Um lamento triste ecoa nos relatos, sobretudo de nossas e nossos guias, de que uma das principais heranças do garimpo desordenado de ouro e diamante na região foi o assoreamento dos rios, a destruição das nascentes, a agressão contínua da natureza e o enriquecimento de algumas poucas famílias.

História dos rios

A reiteração dos relatos e das imagens me fez lembrar antigas propostas, atualizadas durante a construção do Portal do Bicentenário da Independência, sobre a necessidade de construirmos uma história social, cultural e política de nossos rios. Penso que não é possível, mais, deixarmos as novas (e velhas) gerações sem saberem que a natureza só existe na história e que, portanto, tudo o que hoje consideramos (nomeamos) como natural, tem história. E, sobretudo, que esta tem sido, sistematicamente, uma história trágica.

Contar a história dos rios brasileiros por certo não impedirá que a horda capitalista os continue destruindo. O conhecimento, infelizmente, não tem o poder de levar a boas ações, como outrora imaginávamos.

Mas, de outra parte, sem o conhecimento, sem a memória, sem a lembrança de que o Amazonas, o São Francisco, o Paraná, o Jequitinhonha, o Paraguaçu e milhares de outros dos nossos rios são entes que têm e contam histórias, não iremos também a lugar algum, a não ser, mais rapidamente, para a catástrofe já há muito anunciada.

Os povos originários têm dito continuamente que a sorte humana está a depender de uma reconciliação de nossa espécie com todos os entes que chamamos natureza. Isto passa, sem dúvida, pela retomada do que de natural há no humano e, por outro lado, do que de histórico, ou cultural, há na natureza. A sorte está lançada; e, neste momento, ao que parece, ela tende para destruição e a morte.

Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo, doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)

Leia outras crônicas e artigos sobre educação e literatura na coluna Cidades das letras: Literatura e Educação no Brasil de Fato MG

Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

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