No quilombo de Santiago do Iguape, município de Cachoeira, no recôncavo baiano, uma iniciativa tem contribuído com a sustentabilidade e autonomia financeira de mulheres negras e pessoas LGBTQI+ através do sururu, marisco tradicional da região. É o projeto Sururuelas, que ensina como transformar a casca de sururu, comumente descartada pelas marisqueiras, em biojoias. O projeto, realizado pela Associação Rede Elas Negras Conexões, busca fortalecer a inclusão socioprodutiva na comunidade e valorizar a identidade, saberes e riquezas do território.
“A gente mostrou para a comunidade que, ao produzir o sururu, elas estavam mostrando o cuidado que a gente tinha também com esse produto, que é a base econômica da nossa região. O sururu é nosso, porque está todo dia nas mãos dessas mulheres, e aí a gente começou a trabalhar o empoderamento com elas”, explica Pan Batista, mais conhecida como Rosanegra, coordenadora executiva da Rede.
Nascida e criada em Santiago do Iguape, Rosanegra começou há cerca de três anos a pensar em soluções para os resíduos da mariscagem, que é a casca do sururu, diante do mau cheiro que o acúmulo deles provoca. A partir de experiências com biojoias de outros estados, ela decidiu testar o mesmo em sua comunidade.

“Como eu venho de uma trajetória muito marcada, não sei se pela questão das minhas mais velhas, de empreendedorismo ou artesanato, eu comecei a pesquisar. Eu vi que a casca do sururu tinha coisas bacanas, só que eu fui pesquisar para poder partir de um outro olhar. Aí eu percebi que em estados como Alagoas e Pernambuco já tinha gente fazendo coisas bacanas com a casca, utilizando as biojoias, fazendo coisas bonitas mesmo. E aí eu disse, ‘bom, eu vou tentar fazer também'”, relembra.
Após diversos testes para entender a melhor forma de higienização e o ponto certo das cascas para trabalhá-las, a empreendedora começou a desenhar as biojoias e produzir peças até conseguir o primeiro edital que pudesse financiar um projeto de capacitação. Inicialmente foi realizada uma formação com cerca de 50 pessoas, incluindo mulheres pescadoras e marisqueiras, além da população LGBTQIA+ da região. Depois, o projeto cresceu e começou a chegar em mais lugares e envolver pessoas de territórios vizinhos.
“Aí a gente começou a dar oficina também na escola, depois no nosso espaço, e hoje a gente tem somado aproximadamente mais de 200 pessoas que já passaram por esse processo de formação, entendendo como é que coleta, como limpa, entendendo também de precificação, de dar qualidade e valor ao produto”, ressalta.
Autonomia financeira
Ao apresentar uma nova fonte de renda para as participantes, o projeto também tem contribuído para fortalecer a autoestima e identidade das mulheres quilombolas. Uma delas é Tatiana dos Reis, também de Santiago do Iguape. Marisqueira, pescadora, artesã, cozinheira e mãe solo de oito filhos, a quilombola relata que participar da associação foi fundamental para ela sair de um quadro depressivo.
“Eu fui acolhida pela Associação Rede Elas Negras Conexões através de palestras que me convidavam, oficinas. Daí fui ganhando um espaço na associação, fui me fortalecendo, minha autoestima foi melhorando. Eu só ficava em casa, não saía. É um trabalho maravilhoso que a associação faz com as mulheres”, salienta.
De aluna do curso de biojoias, Tatiana se tornou artesã e professora, ensinando outras mulheres a produzirem as peças. Através do projeto do trabalho da associação, ela conseguiu se reestruturar e hoje tem novas perspectivas de vida.
“Tenho meu próprio negócio, minha pequena lojinha de roupa. Foi daí, junto com a associação, que me deu uma oportunidade de trabalho. E daí eu vim me erguer e minha autoestima mudou. Eu sou grata, muito grata mesmo à associação.”
Guardiãs do território
Situada na Bacia do Iguape, o território quilombola ainda luta para conseguir sua titulação oficial. Em março de 2024, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) publicou o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) de Santiago do Iguape, um importante passo para esse processo. De acordo com o órgão, são 1,9 mil hectares de terra e 475 famílias beneficiadas pelo reconhecimento do território e que carregam consigo um legado ancestral de saberes e resistência. Rosanegra destaca que o projeto Sururuelas é também expressão dessa relação profunda da comunidade com o lugar em que vivem.
“A gente se relaciona de todas as formas com a natureza, com o meio ambiente. Nós mulheres, principalmente, nós mulheres pretas, quilombolas, indígenas, a gente tem uma relação muito íntima com o nosso território, com o meio ambiente, pelo fato de que a gente diretamente vive e sobrevive desse local, desse espaço.”

Nesse sentido, a coordenadora aponta que as mulheres envolvidas na iniciativa são verdadeiras guardiãs do seu território. Uma das ações concretas realizadas pelo grupo, por exemplo, é o patrulhamento das águas – um monitoramento comunitário para entender as mudanças e impactos ambientais que o território vem lidando.
“Nós somos guardiãs, nós somos as defensoras, as protetoras. Nós temos que entender também de que forma é que nós estamos minimamente impactando e de que forma é que a gente consegue trazer ações resilientes para resistir a essas mudanças e dar esse nosso recado. É uma preocupação muito grande, porque uma das pautas que a Rede mais atua são as voltadas à questão de raça, gênero e à questão territorial”, explica.
Além da formação em biojoias, cuja oficina mais recente foi realizada em maio, a associação também segue com outras iniciativas de formação e preservação. No mês de junho, por exemplo, o grupo dá início ao projeto Omi Wa – Nossas Águas, voltado à formação de jovens e mulheres negras quilombolas, pescadoras e marisqueiras na defesa dos direitos socioambientais e na preservação do meio ambiente. Rosanegra celebra as conquistas da associação e aponta a necessidade de seguirem crescendo.
“Pelas respostas que a gente vem tendo, a gente acredita que estamos em um caminho realmente que só nos traz o futuro e a ideia de reaplicar isso. Hoje a gente já tem convite em outros lugares na região, começamos a agregar outros tipos de design. Isso sempre trabalhado a questão do traço, da valorização da mulher e da cultura local”, finaliza.